Entrevistas

A peça mais discutida do Brasil – “Anjo Negro” estreará hoje, no Fênix.

Matéria de 02/04/1948


“Desejo sucesso, mas não sacrificaria por ele uma vírgula do meu original”, afirma o dramaturgo Nelson Rodrigues.

 

Dentro de poucas horas, “Anjo Negro”, de Nelson Rodrigues, estará no palco do Fênix. Diga-se que há uma extraordinário expectativa em que se absolve e se condena antes da representação. Julgada pela censura, duas vezes; julgada pelo chefe de polícia; julgada ainda, pelo Ministério da Justiça, que a liberou – a tragédia de Nelson Rodrigues comenta, e pela primeira vez aproxima-se o final, se, tantas vezes o próprio público não voltasse atrás nos seus pontos de vista, não os retificasse ou alterasse totalmente. De qualquer maneira uma polícia, seja qual for, sempre surge investida de uma grande, uma enorme autoridade – e o que se pergunta é – como reagirá o público diante do “Anjo Negro”? Nestas horas, que antecedem a estréia, os intérpretes, os técnicos, que se organizaram expressamente para montar o discutido original, trabalham febrilmente no Fênix. Já o triunfo espetacular do “teatro do estudante” deu uma nova categoria a este teatro, encaminhou para lá um grande público. É um handcap ótimo que o “Anjo Negro” apareça no Fênix. E seu produtor, seu ensaiador e seus artistas e pessoal de palco se mostram cheios de entusiasmo e de confiança. Pouco antes do ensaio geral, ontem, estivemos no teatro. Ouvimos várias pessoas, inclusive Nelson Rodrigues, o próprio autor. 

 

Confiante? – perguntamos 

Em quê? 

No sucesso 

Bem – responde o autor de “Anjo Negro” – estou confiante nos meus companheiros que não param, não comem, não dormem e confiante no enorme trabalho feito. No espetáculo de minha peça, nada se fez sob o signo da imprevisão. Tudo obedeceu a um minucioso planejamento. Tivemos tempo e organização bastante para levantar a “mise-en-scène”, para executar a sua concepção nos mínimos detalhes, para criar uma representação tão justa e harmoniosa quanto possível. Há três meses que Sandro criou este conjunto de homens e mulheres de teatro, há três meses que, sob a direção de Ziembinski, cada ator ou atriz, procura realizar seu papel e entregar-se no ambiente geral da peça. Não houve pressa, antecipação, não houve uma circunstância que pudesse prejudicar o andamento de nossas atividades. Ou por outra: houve uma única circunstância desfavorável, ou seja, a batalha longa, contínua, exasperante contra a Censura.

Desde que “Anjo Negro” sofreu sua primeira interdição que todos nós vivíamos sob a maior angústia. Seria duro, duríssimo, que todo o esforço feito e acumulado, dia após dia, resultasse inútil. Houve um momento em que o desânimo teria dominado, não fosse a força do pessoal, o otimismo obstinado, a decisão de Sandro. Ele jamais deixou de acreditar que venceríamos, afinal, e, por isso, manteve o ritmo dos ensaios, certo de que a paralisação de atividades implicaria num colapso talvez definitivo. Por último, quando a situação era desesperadora, ele teve a seguinte resolução: caso não fosse possível levantar a interdição de “Anjo Negro”, seria levado de qualquer maneira de portas fechadas, num único espetáculo privado. Isto apesar de uma montagem dispendiosíssima e de um enorme elenco. Eu creio que é preciso respeitar o idealismo tenaz de um produtor que se dispõe a sofrer prejuízos totais, contanto que veja em pé, uma única noite, a sua criação. Quando o Ministério da Justiça liberou afinal, meu drama, a alegria do elenco foi uma coisa delirante. 

E o sucesso? 

Não farei previsão nenhuma. Posso responder por mim, ou pelos companheiros infatigáveis que trabalham há tanto tempo e de cujo esforço, disciplina, concentração sou uma testemunha quotidiana. Posso responder por Ziembinski que criou para uma peça tão precária como poderá ser a minha, um espetáculo que repito maravilhoso, pela poesia plástica. O texto será péssimo, e não as imagens criadas pelo artista polonês. Posso ainda responder por Sandro que não dorme há 48 horas. Mas pelo público, não. O público é sempre um estranho, um desconhecido. E eu quando faço as minhas peças, a verdade é que não penso neles, mas cogito de possíveis reações e preservo uma única qualidade: o de ser irredutível, o de não fazer concessões. A peça é o que deve ser segundo a sua natureza, a sua personalidade. Não quis agradar a ninguém, e se alcançar este resultado – desculpe meu tom e arrogância apenas aparente – foi sem querer. Portanto, se eu não penso no público, e não quero adulá-lo – ele pode reagir como lhe parecer melhor repartirei seu julgamento. Desejo o sucesso mas não sacrifico por ele uma vírgula do meu original ou a concepção de uma única cena. Isto nem implica num ato heróico, mas exprime somente um dever de elementar dignidade autoral. 

Acredita no elenco? 

Muito. Ziembinski conseguiu torná-lo extremamente harmonioso. E encontrou para obter este resultado intérpretes de uma disciplina quase patética e que, nestes três meses, não fizeram senão estudar seus papéis e viver praticamente em função deles. E há, ainda, valores individuais, dentro do elenco, que repito de exceção. Por exemplo, Itália Fausta, atriz que as platéias mais novas não conhecem, senão através de referências vagas ou erradas. Tendo completado meio século de atividade teatral, ela pode ser considerada uma atriz moderníssima. Não pertence ao passado e sua atualidade me parece indiscutível. Outra: Maria Della Costa, jovem e bonita – duas qualidades que provocam em terceiros ou .../... a mais viva indignação – atingir de maneira quase fulminante a sua maturidade dramática. Orlando Guy fará o marido preto. O argumento de que não é negro retinto não é válido. Considerado o caso de um estrito e honesto ponto de vista teatral – o único que importa – basta, que sua discreta maquilage e seu desempenho dramático dêem a ilusão do “negro Ismael”. E não teremos direito à menor restrição. E se Ziembinski o escolheu entre muitos que se candidataram ao papel deve-se a que o tipo de Orlando Guy era o único que correspondia à concepção do tipo X que o ensaiador polonês exigia. Outro valor excepcional: Nicete Bruno. Sua cena com Maria Della Costa, no terceiro ato de “Anjo Negro”, é um momento admirável de técnica e de emoção. Outro ainda: Josef Guerreiro, extremamente lírico no papel de irmão cego. Em suma, foram criadas para “Anjo Negro” todas as condições técnicas e artísticas. E eu, como autor, já não tenho nada mais com o assunto, a partir do momento que terminei o manuscrito. A peça adquiriu sua própria vida, fará seu próprio destino. O máximo que posso fazer é desejar que “Anjo Negro” seja feliz. Nada mais. 

“Anjo Negro” é uma peça mórbida? 

Isto não me interessa e, portanto, não desejo responder. Poderei fazer à margem alguns comentários. Em primeiro lugar, a mim, tanto faz que seja ou deixe de ser mórbida. Já ouvi essa pergunta muitas vezes e fico espantado. Pois a morbidez não me parece que seja nem um defeito, nem uma qualidade; significa apenas uma característica muitíssimo inofensiva. Seria curioso um espectador que fosse expressamente ao teatro para assistir uma peça mórbida; ou então, para não assistir uma peça mórbida. Portanto, se atribuírem ao “Anjo Negro” toneladas de morbidez, não ficarei em absoluto inconsolável.




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Sobre

Nelson Falcão Rodrigues nasceu no Recife, em 23 de agosto de 1912, o quinto filho de uma família de catorze. Quando tinha três anos, seu pai, Mário Rodrigues, foi tentar a sorte no Rio de Janeiro, capital da República. O combinado era que tão logo encontrasse trabalho, chamava a família para ir a seu encontro. Maria Esther, sua esposa, não agüentou esperar. Em 1916, empenhou as jóias e mandou um telegrama para o marido, já avisando do embarque naquele mesmo dia. Nelson conta, nas "Memórias" publicadas no "Correio da Manhã", que se não fosse a atitude da mãe, o pai jamais teria permanecido no Rio.