Um Nelson Rodrigues folhetinesco por inteiro. Isto é importante?
Matéria de 24/04/1980
Os “Sete Gatinhos”, roteiro e direção de
Neville D’Almeida, baseado em peça de Nelson Rodrigues; fotografia de Edson
Santos; música de Roberto Carlos e Erasmo Carlos; com Lima Duarte, Ana Maria
Magalhães, Antônio Fagundes, Regina Casé, Cristina Aché, Thelma Reston, Sônia
Dias, Sura Berditchevsky, Cláudio Correa e Castro, Sady Cabral, Maurício do
Valle. Nos cines Ipiranga-1, Art-São João, Center, Astor e circuito. Censura:
18 anos. Segunda união do mineiro Neville com a croprolalia de Nelson
Rodrigues, depois do péssimo “A Dama do Lotação”, este filme- que iniciou sua
trilha de escândalo quando, no recente festival de Gramado, despertou a ira do
secretário da Cultura do Rio Grande do Sul- é surpreendentemente correto.
Certamente a melhor incursão do cinema no mundo mórbido e delirante de Nelson
Rodrigues criou ao distorcer, de forma muito pessoal, o que seria a realidade
dos subúrbios da Zona Norte carioca vista pelos chamados jornais populares.
Excessivamente violento - sobretudo a violência verbal - embora não chegue
sequer próximo ao “filme que nasceu com a predestinação das obras-primas” como,
no seu exagero peculiar, o próprio Nelson Rodrigues o descreveu, é bem feito,
apesar de excessivamente apegado à origem teatral, o surpreende pela correção
com que capta os desvarios do escritor. Na estruturação dos tipos, que tem como
principal suporte os diálogos típicos do escritor, o filme tem muito pouco de
criação puramente cinematográfica, mas tem muito, ou tudo, do Nelson Rodrigues
folhetinesco de A Vida Como Ela É, série de crônicas publicadas há alguns anos
na imprensa carioca. Aquela visão coprológica dos subúrbios cariocas -o mundo
povoado de canalhas, pusilânimes, prostitutas, “idiotas da objetividade”, de
colegiais corrompidas e políticos lascivos e corruptores, de uma luxuria
degradante, de casas suburbanas onde um dos toques característicos é o pingüim
em cima da geladeira cor de rosa, do véu e da grinalda da noiva como ilustração
máxima de uma pureza pretendida e jamais alcançada, do pai de família fracassado
e humilhado no trabalho, e por isso mesmo prepotente em casa, de mulheres
sexualmente reprimidas, de criaturas que se agridem e se destroem - está por
inteiro no filme. Aliás, é o filme por inteiro. Neste aspecto, e somente nele,
“Os Sete Gatinhos” supera outras adaptações importantes do escritor, como o
Boca de Ouro, de Nelson Pereira dos Santos, nos anos 60, e Toda Nudez Será
Castigada, de Arnaldo Jabor, nos anos 70. Isto não significa que o filme de
Neville tenha maior importância, mas apenas que é um Nelson Rodrigues
folhetinesco por inteiro. Este patamar é alcançado também graças ao elenco, de
um modo geral, impecável, especialmente Regina Casé e Lima Duarte. De outra
parte, o filme é propositalmente escandaloso, portanto desonesto na medida em
que , carregando nas tintas, procura se transformar em sucesso de bilheteria
pelo choque de gritar palavrões, expor aberrações, nus frontais e toda uma
sucessão de situações escabrosas em que apenas o cinema absolutamente
pornográfico feito na Europa e Estados Unidos há 10 ou 12 anos foi mais
explícito.