Entrevistas

A última peça de Nelson Rodrigues, um tributo à morte

Matéria de 20/10/1978


Guida e Lígia. A primeira vê na morte a realização do amor sem retorno possível, sem arrependimento, eterno. A segunda, desiludida brutalmente pelo marido Décio, pensa da mesma forma. As duas disputam o mesmo homem, Paulo, o diretor do pacto de morte e é ela quem deve escolher sua acompanhante o rito. Tudo se desenvolve num clima de amor absoluto, que quer a consagração da morte. Quem morre por um ser amado, leva consigo o consolo da eternidade de seu sentimento.

Esta trama acompanha Nelson Rodrigues desde o início dos anos 40, quando optou pela realização de Vestido de Noiva. As peças foram se sucedendo e só agora ele concretiza o velho enredo, - pensando e repensado mais de 500 vezes – batizado de A Serpente.

A ‘Serpente’ é uma peça que acabei há 15 dias, mas a história estava para se realizar há muito mais tempo. Um autor sempre tem mais que uma peça na cabeça. Fica adiando esta ou aquela e a ordem cronológica acaba não sendo cronológica assim. É mais um arbítrio do autor. Quando eu ia fazer  o ‘Vestido de Noiva’ já tinha ‘A Serpente na cabeça. Optei pelo ‘Vestido’, que foi decisivo na minha carreira teatral. Podia ter feito ‘A Serpente’ logo depois, mas fia ‘Álbum de Família’. Depois saiu ‘O Anjo Negro’. O interesse pela  ‘Serpente’ sempre foi profundíssimo. Mas fica vadiando.

Há cinco anos Nelson Rodrigues não escreve para teatro e confessa uma enorme fé na ‘Serpente’. A tal ponto que evita maiores revelações sobre a peça ‘para não estragar o mistério’. 

Sinto A ‘Serpente’ como senti minhas outras peças. É uma peça violenta com todas as que fiz. Não que tivesse preocupado de fazer coisas chocantes. A vida em si é chocante, o homem é chocante. É a história de duas mulheres que querem fazer o pacto de morte com o mesmo homem. A peça começa quando uma delas está se separando do marido e tem ainda a presença de uma crioula salubérrima, de ventas triunfais. É  dividida em um só ato e tem cinco personagens. Não quero contar mais para não estragar o mistério. 

Esta é a 17ª peça de Nelson Rodrigues e também abordará um ponto comum de todas as anteriores: a classe média. 

Ela segue minha linha de crítico da classe média. Meu teatro é de pouquíssimos granfinos. O que eu gosto, e o que me fascina, ou é a classe muito baixa ou então a classe média. A classe média é formidável. Quando escrevo sobre ela, me debruço sobre ela nas minhas varandas, vejo como é humana, como é interessante. É classe que mata e se mata. Um granfino precisa de 25 mil estímulos para se matar. Só mata em último caso. A classe média tem mais heroísmo. (conforme for o caso ela chega lá e mata com muito mais fidelidade e eu admiro o homem que, a certa altura, acorda com uma brutal nostalgia de morte. 

Nostalgia da morte? 

O homem nasce, evidentemente, contra vontade. Como diz o homem da esquina, ninguém o consultou. É um impasse tremendo pelo fato de ter nascido. Por isso há suicídios natos, o suicida vocacional. O suicida não depende de fatos nem de motivos. Depende desta nostalgia, desta vontade de retornar ás suas raízes mais retorcidas. Uma vez eu escrevi uma coisa, criticada por uns e elogiada por outros. Eu disse que Deus prefere o suicida. Você sabe que s idiotas da objetividade começam por negar Deus e o suicida. Mas a verdade é que há homens que querem morrer e sobretudo morrer por ser amado. Isto é A Serpente. Todos sentem o apelo da morte, menos a salubérrima crioula das ventas triunfais. 

Por que o suicídio como tema? 

Na minha infância profunda o pacto de morte estava em seu esplendor e três casos me marcaram profundamente, me tornaram fascinado pelo suicídio. Em Aldeia Campista. (bairro carioca) me lembro que uma vizinha, santa mulher, traía seu marido. O marido recebeu uma carta anônima contando tudo com a máxima fidelidade de detalhes. Você sabe que a carta anônima é mais honesta das cartas, porque o sujeito diz exatamente o que quer. Não é obrigado a achar o outro ilustríssimo senhor. Bom, mas aí o marido resolveu matar a mulher a matou-a sem ser diretamente. Obrigou-a a tomar veneno. Aquilo e deu uma sensação de espanto e beleza. Achei belo ela se estribuchar com o marido ali, acompanhando sua morte. Outro caso foi  de dois jovens  namorados, que fizeram um pacto de morte de se envenenar com um guaraná num botequim. O rapaz serviu dois copos, colocou formicida nos dois mas a menina bebeu antes. Ele saiu correndo e pegou um bonde que estava passando em frente. Este não tinha nostalgia de morte, não. O terceiro foi de uma menina que adorava o pai e já detestava a mãe, como se disputasse com ela a questão do pai. Descobriu que a mãe o traía e obrigou-a a se envenenar. E você não beber eu bebo, ela disse, e a mãe, vendo nos olhos dela o ódio que havia de perseguir até a consumação dos séculos, bebeu e caiu ali, aos pés da filha. Achei tudo isso lindo, com acho qualquer morte, mesmo a natural, sem tragédia, que assim mesmo acho trágico. 

A escolhida pelo autor para representar um dos dois papéis principais – Guida ou Lígia- é Fernanda Montenegro, que há muito tempo  lhe pede uma peça, mas o destino quis adiar tudo até agora. O autor e a atriz estão apressando os entendimentos para lançar A Serpente ainda este ano. 

Há muito tempo ela me pede uma peça. Por exemplo, o ‘Beijo no Asfalto’ ela me pedia a toda hora, mas não deu para ficar com ela. ‘Toda Nudez Será Castigada’ era para ela representar no teatro em vez da Cleide Yáconis. Dei para ler o primeiro ato e ela não gostou, Ségio Brito não gostou, Fernando Torres, que vai ser o diretor da ‘Serpente’, não gostou. A peça lida é uma coisa e representada é outra. Mas ‘Toda Nudez Será Castigada’ era boa, tanto para leitura quanto no palco foi um equívoco. A arte está cheia de equívocos. Por isso, se ela não gostar da ‘Serpente’ não vou ficar espantado. Aí vamos combinar tudo. Ela também está com uma peça que é um sucesso danado. Tem artista que passa a vida toda sem ter uma bilheteria dessas. Não se pode sacrificar a que está dando certo para meter outra. Se eu tivesse 18 anos podia esperar por 10 ela, mas chega uma fase na vida da gente em que se sente o ruído do tempo passando, aquela coisa fluvial passando. Estou com 65 anos e se não puder ser agora vamos ter que negociar. O Fernando Torres vai ser o diretor e fica com o resto, escolhe os outros quatro artistas, ou os cinco, se a Fernanda não puder’. 

Por que Serpente? 

Porque a serpente é um símbolo paradisíaco. É um símbolo muito rico. Pode-se dizer que a peça são fatos e visões da minha vida, completados por minha imaginação. Completados pelos artistas. Nas outras peças acontecia o contrário. Usava os fatos para ilustrar uma história imaginada por mim. Como já disse, o pacto de morte e o suicídio acompanham-me desde a infância e como é está  idéia básica da ‘Serpente’, as alterações que ela sofreu durante anos de espera foram somente na forma. Enriqueci os diálogos, acrescentei detalhes, mas a idéia básica é a mesma, inclusive de apenas um ato e cinco personagens. 

Apesar de sentir o ruído do tempo passando, Nelson Rodrigues ainda tem planos para novas peças. Uma já montada na sua cabeça e outra autobiográfica. 

Antes de escrever eu penso muito. Levo mais tempo pensando que escrevendo. Quando vou para a máquina já está tudo resolvido. Tenho outra peça já engatilhada para fazer, mais ou menos montada na cabeça, mas não sei quando sai, porque não é bom jogar uma em cima de outra. De repente, faço. Além disso, quero fazer minhas memórias, que já existem em livro, no teatro. Minha idéia era uma peça em nove atos, divididos em três por dia. A peça inteira levaria  três dias. Só não sei quando vai sair. Evidentemente seria uma adaptação do livro. Não pode ser nada novo porque são dados biográficos. Não posso nem devo mudar, porque o interessante é o testemunho de minha vida por mim mesmo.



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Sobre

Nelson Falcão Rodrigues nasceu no Recife, em 23 de agosto de 1912, o quinto filho de uma família de catorze. Quando tinha três anos, seu pai, Mário Rodrigues, foi tentar a sorte no Rio de Janeiro, capital da República. O combinado era que tão logo encontrasse trabalho, chamava a família para ir a seu encontro. Maria Esther, sua esposa, não agüentou esperar. Em 1916, empenhou as jóias e mandou um telegrama para o marido, já avisando do embarque naquele mesmo dia. Nelson conta, nas "Memórias" publicadas no "Correio da Manhã", que se não fosse a atitude da mãe, o pai jamais teria permanecido no Rio.