Críticas

Anjo Negro


Sobre "Anjo Negro" já se disse todo o mal e todo o bem que era possível. E eu compreendo que assim seja. Uma peça com tais características causa profundo traumatismo, seja no público, seja na crítica, seja no próprio teatro do país. Muito difícil, se não impossível, manter diante da obra do Sr. Nelson Rodrigues uma atitude de serenidade, de isenção, de plena lucidez. A pessoa se apaixona a favor ou contra. "Anjo Negro" tem amigos e inimigos igualmente ferozes. Está certo; ou, antes, está errado, mas é humano, é compreensível.

 

Só uma coisa não é compreensível, ou tolerável, embora possa parecer humano: a má fé. Até o momento, eu não disse uma palavra a respeito das críticas desfavoráveis à tragédia que estou apresentando. Não que me faltassem argumentos, pois grande parte dessas críticas é de uma fragilidade e, em muitos casos, de uma obtusidade de fazer dó. Basta citar um único exemplo: houve um benemérito que, depois de assistir aos três atos de "Anjo Negro", pensou, pensou e concluiu:

 

É uma peça realista!

 

Realista como, senhores? Se há meia dúzia de senhores que entram pelas paredes, se não faz sol há dezesseis anos, se as flores bóiam no assoalho, se o assoalho é uma espécie de rio, se os carregadores de piano estão isentos do tempo, se Virgínia e Ismael devem viver até o fim dos séculos, purgando as suas paixões - realista como? Agora, imaginem: se uma pessoa não consegue enxergar uma realidade objetiva, uma obediência irrefutável, está condenada a incidir em erros, equívocos muito mais graves e fatais. Se, da minha parte houve abstenção em qualquer discussão, deve-se à reflexão que sempre fiz: "Qualquer um tem o direito de ser obtuso". Direito sagrado, inalienável, que eu democraticamente, timbrava em reconhecer.

 

Mas sucede o seguinte. Certos cavalheiros, além de não gostar de "Anjo Negro", ainda ficam indignados. Ora, quando eu não gosto de um quadro - digamos assim - dou-me por satisfeito e o esqueço e não penso mais no assunto. Nem todos são assim. "Anjo Negro" tem inimigos pessoais. Pessoas que o odeiam e que se recusam a assumir, diante dos três atos, uma atitude estritamente crítica. E o resultado é este - uma má fé cínica. Está, neste caso, a acusação de que desrespeita a religião. Agora, um breve e indispensável esclarecimento: eu sou católico, tenho a minha consciência católica e jamais produziria um espetáculo, que, mesmo remotamente, implicasse num "ultraje à religião".

 

 

 

Vejamos, porém, de que forma poderia a peça do Sr. Nelson Rodrigues ferir a religião? Os acusadores esclarecem: "na profanação da Ave Maria". Passo agora a falar dos católicos daqui e de todo o Brasil, passo a falar ao público em geral e particularmente ao leitor. Que todos julguem e respondam:

 

Há profanação do fato de se rezar "Ave Maria" num velório de criança?

 

Pois é isso que acontece em "Anjo Negro". Um menino é assassinado. Senhoras pedem a Deus pelo que morreu. Insisto:

 

Rezar para um pequenino defunto é um desrespeito à religião?

 

Aliás, o próprio autor, falando a um vespertino, deu uma resposta magistral e absolutamente irrespondível a esta acusação que seria ridícula se não fosse, sobretudo, odiosa. Mas nem todo o mal que se diz de "Anjo Negro" decorre de má fé. A incompreensão também tem influído muito. Não do público, cujo instinto é sensível à grandeza do texto e do espetáculo. Refiro-me aos que sabem julgar as obras de teatro pelos padrões tradicionais. Prudente de Morais, neto, Pompeu de Souza, Santa Rosa explicaram o fenômeno. Este último transcreve, a propósito, luminosíssimos conceitos de T.S.Elliot, que se ajustam maravilhosamente ao caso de "Anjo Negro".

 

Diz Elliot: "A ordem existente está completa antes do aparecimento da obra nova; para que a obra persista após o advento da novidade, toda ordem existente deve alterar-se, por mais simplesmente que seja, e, assim, se reajustam a relações, as proporções, os valores de cada obra de arte em face de todas as coisas. Isto significa conformidade entre o velho e o novo".

 

Mas o debate de ordem estética deve interessar mais aos especialistas. A mim, só me cabe protestar, e com a veemência, contra a calúnia - pois é calúnia - de que "Anjo Negro" seja um ultraje a religião. É só.

 

 

 



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Sobre

Nelson Falcão Rodrigues nasceu no Recife, em 23 de agosto de 1912, o quinto filho de uma família de catorze. Quando tinha três anos, seu pai, Mário Rodrigues, foi tentar a sorte no Rio de Janeiro, capital da República. O combinado era que tão logo encontrasse trabalho, chamava a família para ir a seu encontro. Maria Esther, sua esposa, não agüentou esperar. Em 1916, empenhou as jóias e mandou um telegrama para o marido, já avisando do embarque naquele mesmo dia. Nelson conta, nas "Memórias" publicadas no "Correio da Manhã", que se não fosse a atitude da mãe, o pai jamais teria permanecido no Rio.