Críticas

Anjo Negro

Matéria de 11/04/1948


Naquele mesmo palco onde viveu durante várias noites o príncipe dinarmaquês, "o louco por astúcia", é exibida agora a tragédia de um jovem dramaturgo louco em substância.

 

Justificativa curiosa bailava em torno do último original de Nelson Rodrigues, curiosidade ateada pela propaganda dos fanáticos amigos do autor e alimentada através da imprensa. A incontestável originalidade de "Vestido de Noiva", a curiosa encenação de "A Mulher sem Pecado", as controvérsias em torno de "Álbum de Família", e finalmente a interdição de "Anjo Negro" pela censura, deram a Nelson Rodrigues uma popularidade comparável à que surge em torno da malograda "Aracy Abelha"...

 

Há crimes e crimes, há peças e peças, mas se há crimes que são verdadeiras peças, há peças que são verdadeiros crimes.

 

A comparação teatral organizou-se para encenar a produção de Nelson Rodrigues. A censura, com o intuito de extinguir a fogueira que prometia incinerar a moralidade pública, lançou um jato direto no braseiro, sob a forma de claríssimo ofício, onde com a inteligência, cultura e zelo pelo cargo que tão bem ocupa, o Dr. Melo Barreto expôs os motivos que levaram a censura a proibir a criação do Sr. Nelson Rodrigues.

 

Quem teve o ensejo de ter o citado ofício, elaborado dentro dos mais apurados conhecimentos de literatura, de teatro, de Código Penal e de moral, e quem conheceu o original "Anjo Negro" antes de ser encenado, não só compreende e justifica sua interdição como se orgulha ainda por ver que, apesar de tudo, há no Brasil uma entidade que cumpre com precípua finalidade, a de moralizar os espetáculos públicos resguardando a sociedade brasileira, pois a imoralidade cristalina produziu o efeito funesto de um jato de matéria inflamável sobre os adendos da "arte teatral". O fogo avolumou-se, as chamas alvoroçadas começaram a subir, as labaredas atingiram os críticos, e entre estes o do "Correio da Manhã", que arderam em defesa da liberdade de criação, e tais proporções tomou o incêndio que as chamas subiram... subiram... subiram... até atingirem a justiça.

 

A vitória do "Anjo Negro" sobre a censura daria ao autor muito maior popularidade que seus sucessos anteriores. Aí está a questão...

 

Seria o dramaturgo capaz de atrair multidões para assistir à sua tragédia? Não! Então ele usa de esperteza, faz barulho, faz escândalo, faz-se "louco". A maioria dos que vão presentemente ao Fênix, vão para julgar a censura. Outros vão para julgar a própria justiça; que contrariando a censura permite o espetáculo. Há os que vão, pobres filhos de Adão, saborear o fruto proibido, outros enfim vão para julgar a peça e seu autor.

 

Vamos pois, ao julgamento da peça em sua essência. Para Lope de Vega, "um tablado; dois atores, uma paixão, bastam para fazer um drama". Para o Sr. Nelson Rodrigues, uma dúzia de crimes ainda não basta... Precisa sempre de um "velório"... e precisa ainda que o Sr. Ziembinski impressione a platéia com o surrealismo de sua encenação.

 

Grande qualidade possui o original de Nelson Rodrigues. Mantém a atenção em suspenso durante todo o desenrolar da tragédia. O espectador é tomado de surpresa, de assombro, de estupor. Isto tudo, porém, não é provocado pelos seus personagens. Eles não conseguem surpreender, pois se nem chegam a convencer... Os intérpretes da tragédia são a tal ponto dotados de monstruosidades, que não vivem os seus papéis, mas são amestrados repetentes de personagens que só tiveram vida dentro do cérebro criador do Sr. Nelson Rodrigues.

 

E a surpresa que se apodera do expectador não é diante do drama, mas da capacidade insuperável de o autor acumular tanta obscenidade em tão curto espaço de tempo. E o assombro que invade o espectador não resulta de nenhuma emoção transmitida pelo texto, mas sim do espanto em ver que há quem chame aquilo de "obra prima", de "Arte".

 

Que espécie de prazer ou interesse artístico há em se assistir a um suceder de cenas mórbidas, apesar de serem, por vezes, descritas como poesia? Nas verdadeiras tragédias os heróis sofrem ou fazem sofrer. São seres humanos com vícios, são criminosos, mas são seres humanos. A par do crime há o castigo, há o remorso, há qualquer conclusão moral. Na tragédia, porém, do "maior dramaturgo contemporâneo", os personagens não têm feições humanas.

 

Exageradamente imoral no assunto, é profundamente imoral quanto ao epílogo. Há por certo grandes e imortais tragédias baseadas em crimes. Nenhuma, porém, será maior que esta em quantidade de crimes.

 

A obra teatral só deve ser julgada depois de seu batismo cênico. "Quem não possui a faculdade de despojar-se de suas simpatias ou antipatias pessoais para julgar um autor, não pode ser crítico". A crítica ao autor de "Anjo Negro" vem sendo feita por seus fanáticos amigos, excelentes jornalistas. Serão eles tão críticos quanto amigos?

 

Quem não quer admitir que o teatro está submetido a leis eternas, não peca senão por ignorância ou má fé e justamente por isto torna inútil qualquer discussão. Os autores incapazes de construir suas peças dentro da coerência e da harmonia, corruptores que são do verdadeiro teatro, suprem sua deficiência criadora por um malabarismo astucioso. Já que não podem comover, contentam-se em chocar. Já que não podem justificar o novo gênero teatral por eles inaugurado, arbitrariamente colocam-se acima de tudo o que já se tem feito em teatro, batizam-no de super-teatro, quando nem sequer chega a ser teatro. Confundem arte e licenciosidade!

 

Afastei-me do "Anjo Negro", voltemos a ele. Outra grande qualidade tem a peça do Sr. Nelson Rodrigues... a colaboração do Sr. Ziembinski, o mestre da encenação. Basta que o autor indique "que se deve tirar o maior rendimento plástico de determinada cena..." (da qual pelo texto ele não conseguiria rendimento algum) e abrem-se as portas ao arrojado gênio criador do artista polonês. Realmente o Sr. Ziembinski se desincumbe galhardamente de sua missão e oferece ao público um espetáculo.

 

Outra qualidade tem a peça do Sr. Nelson Rodrigues, o aparecimento da grande artista dramática Ítala Fausta - uma armadilha para assegurar o sucesso. Esta notável artista brasileira tem o seu público, que vai aplaudi-la incondicionalmente. Quando a platéia prorrompe em aplausos ao ver a tia praguejar, aplaude a Sra. Itália Fausta, mas são migalhas de glória atiradas ao "maior dramaturgo brasileiro".

 

"O teatro não é só uma casa de espetáculos, mas uma escola de ensino; seu fim, não é só divertir e amenizar o espírito, mas pelo exemplo de suas lições, educar e moralizar a alma do público".

 

Que dizer pois, sob este aspecto, a respeito de "Anjo Negro"?

 

O assunto da peça é de fundo sexual, como sexuais são todos os temas do autor. Mas ele não consegue desligar sexo e crime. Em "Anjo Negro", porém, o autor não se satisfaz com sexo e crime, e baseia o drama no problema racial e isto de maneira tão absurda e inverossímil que surpreende ao ariano mais aterrado a preconceitos raciais. E no Brasil não pode haver clima que justifique a concepção do autor, salvo se tem em vista lançar um ponto de partida para uma luta de raça com intuito de engendrar ódios e desordens sociais. Certamente por isso é o seu gênio qualificado de "revolucionário". Mas se o teatro é uma transposição da vida, o valor da obra teatral está na medida da dose de verdade e de humanidade que a mesma contém.

 

Ora, a peça em questão prima pelo absurdo e pela inverossimilhança que se irmanam por vezes ao ridículo, apesar de certos críticos chamarem aquele emaranhado de monstruosidades a maior obra prima do teatro brasileiro. Realmente no gênero promete ser a maior!

 

Não sei qual será doravante o destino da censura, ou se este órgão deverá desfazer-se em um nó, uma vez que não pode ser tocado. É verdade e é pena que seja verdade. Mas meia dúzia de escritores resolveu acreditar que a arte purifica a imortalidade... Logo agora que se começava a fazer teatro no Brasil... Que dirá o Teatro Experimental do Negro, composto de elementos de real valor ante a afronta de se exibir algo que é um atentado à dignidade humana de sua raça?

 

É simplesmente lamentável que a censura tenha sido tão aviltantemente ofendida. Agiu com justiça dentro de suas atribuições, não importa que a maioria diga o contrário.

 

E quando um indivíduo assiste à demolição do que de bom há no seu país, lembra-se da frase do príncipe dinamarquês:

 

"Não vai tudo direito... nem pode acabar bem..."

 

E o eco responde nas galerias do Fênix, testemunhas recentes de espetáculos que realmente seduziram e comoveram:

 

"Não é só no reino da Dinamarca que há algo de podre".

 

Por enquanto é só... E vós que me ledes direis com os vossos botões... O que ela tem é mágoa porque não encontra quem encene as suas peças... Ah!... Se eu tivesse o meu Ziembinski... O resto... é silêncio... 



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Sobre

Nelson Falcão Rodrigues nasceu no Recife, em 23 de agosto de 1912, o quinto filho de uma família de catorze. Quando tinha três anos, seu pai, Mário Rodrigues, foi tentar a sorte no Rio de Janeiro, capital da República. O combinado era que tão logo encontrasse trabalho, chamava a família para ir a seu encontro. Maria Esther, sua esposa, não agüentou esperar. Em 1916, empenhou as jóias e mandou um telegrama para o marido, já avisando do embarque naquele mesmo dia. Nelson conta, nas "Memórias" publicadas no "Correio da Manhã", que se não fosse a atitude da mãe, o pai jamais teria permanecido no Rio.