Críticas

Um "Álbum de Família" pouco família

Matéria de 03/08/1967


A encenação de "Álbum de Família", vinte dois anos depois de sua publicação e da sua estúpida proibição pela censura, mostra expressivamente como os tempos e os homens mudam. Naquela época, alguns dos intelectuais mais respeitáveis e inteligentes do país se engajaram numa feroz polêmica acerca dos méritos essenciais da obra e, principalmente, da autentidade do seu espírito trágico. Hoje em dia, uma tal polêmica parece impossível: em que pese o respeito que todos nós temos pelo talento de Nelson Rodrigues e pela sua contribuição para a renovação do teatro brasileiro, aprendemos a não levá-lo inteiramente a sério - principalmente quando ele pretende ser trágico. Sabemos, na época atual, que a principal obra de Nelson Rodrigues não são propriamente as suas peças e sim o personagem Nelson Rodrigues que ele criou e ao qual tem de permanecer fiel em tudo o que faz especialmente nas peças, que escreve. O interesse de "Álbum de Família" resiste menos nas qualidades e defeitos intrínsecos da peça do que na circunstância histórica de ter sido esta, mais do que qualquer outra, a obra que deu origem ao personagem Nelson Rodrigues: depois do escândalo literário provocado, na época, por "Álbum de Família", o autor pouco mais tem feito do que procurar manter incólume a imagem que a opinião pública formou a respeito dele, continuando a indignar aqueles que se sentiram indignados com "Álbum de Família" e continuando a corresponder à admiração daqueles que admiraram "Álbum de Família". Isto não impede, bem entendido, que alguns dos textos por ele criados depois de 1945 tenham sido - independentemente dessa necessidade de corresponder a uma determinada imagem - interessante, forte e convincente.

 

Não me parece, francamente, possível levar "Álbum de Família" a sério, hoje em dia, a não ser sobre o que acabo de apontar. Fora disso, a obra é de uma falsidade a toda prova, quer a consideremos sob o ponto de vista de relato realista, quer vejamos nela a representação simbólica de conflitos subconscientes na mente humana. Falta aos personagens da peça e às situações em que eles se encontram, em primeiro lugar, a mais elemental plausibilidade humana, em segundo lugar, para que a fatalidade do incesto e da tara que pesa sob a incrível família possa dar origem a um fenômeno dramático esteticamente válido, teria sido necessário que os personagens enfrentassem em determinados momentos, a condição em que se encontram, tomassem lúcida a consciência dela e procurassem lutar contra ela, ainda que sabendo que serão fatalmente derrotados. O que faz a grandeza de Édipo, como personagem de teatro, não é o fato dele ter assassinado o pai e casado com a mãe, e sim a sua inabalável determinação de descobrir a verdade e assumir as suas conseqüências. Ora, os personagens de "Álbum de Família" são por demais tolos, primários e tapados para poder enfrentar lucidamente a realidade dentro da qual o autor os colocou: das suas bocas só saem banalidades e lugares comuns, e eles são incapazes de enxergar um palmo além do mini mundo em que vivem. Mesmo as insinuações de uma certa nostalgia da pureza original que alguns deles revelam são por demais pequeno burguesas, por demais fora de proporção com a monstruosidade de suas taras, para poderem servir de base a um conflito de forças equilibrado e dramaticamente convincente.

 

Porém, se desistirmos da idéia de levar "Álbum de Família" a sério, poderemos descobrir na peça outras qualidades, surpreendentes e nada desprezíveis. Principalmente, veja em "Álbum de Família" um divertidíssimo guignol, em que todo o talento de Nelson Rodrigues para o desmedido, toda a sua exuberante imaginação para a criação do detalhe monstruoso, todo o seu tão pessoal senso de humor baseado na exaltação do grotesco, toda a sua delirante teatralidade encontram um terreno magnificamente propício. Há em Nelson Rodrigues um certo lado Alfred Jarry, e "Álbum de Família" não fica longe de ser uma espécie de "Ubu Rei" brasileiro, embora sem a mesma agressiva lucidez de intenções que caracteriza a obra de Jarry. Passo perfeitamente a imaginar a peça interpretada, no mais puro estilo guignol, com monstruosos fantoches - embora não acredite que o autor venha concordar com esta interpretação. Na inteligente direção de Cleber Santos há, aliás, algumas insinuações bastante sutis e convincentes neste sentido. Não é que Cleber tenha baseado seu espetáculo, formalmente, em imagens de guignol, mas há um nítido desenho guignolesco na impostação das interpretações; do irônico contraste entre esta impostação e a linha visual despojadamente trágica da encenação nasceu um espetáculo atraente, interessante e divertido.

 

A concepção visual é baseada num simples e excelente dispositivo cênico que favorece - tanto nas cenas passadas dentro da casa, como nas passadas na igreja - marcações plasticamente expressivas, e num jogo de luzes que isola as figuras e não lhes permite se reunirem em grupo, simbolizando assim a falta de comunicação entre os personagens. A movimentação é sóbria, incisiva, seca. Formalmente, há um aparente respeito à palavra tragédia que Nelson Rodrigues escolheu para definir o gênero de sua peça. Mas a ironia começa na concepção daquilo que o autor imaginou como o coro da sua tragédia: os comentários proferidos por um locutor - que representa a opinião pública convencional - em torno de fotografias do álbum sugeridas no título, nas quais se acham registrados os momentos decisivos (sempre perante a opinião pública convencional) da história da família: casamento, nascimento etc. O tom desse coro, já por si irônico no texto, foi levado muito mais longe por Cleber Santos: em vez das fotografias do "Álbum de Família", temos uma série de slides com pinturas famosas da sagrada família, e as intervenções do locutor, lida por algumas vozes conhecidas de rádio e da TV, entre as quais de Ibrahim Sued e de Chacrinha, provocam, compreensivamente, incontido hilaridade na platéia. Custa-nos um pouco a penetrar na convenção desse tratamento jocoso do coro, mas, uma vez a convenção estabelecida e assimilada, ela se revela bastante eficiente. Mas o maior sucesso de Cleber Santos reside na direção de atores, aos quais o diretor soube e teve com bastante unidade - apesar das deficiências individuais de alguns - um tom que me pareceu extremamente adequado: os intérpretes não constroem fáceis caricaturas de seus personagens, pelo contrário, procuram interiorizar - na medida do possível - a sua monstruosa vivência, mas ao mesmo tempo criticam ironicamente, com grande nitidez a total inautenticidade desses personagens e a sua incontida tolice. Algumas marcações desnecessariamente óbvias (as mãos de Ginaldo de Souza, a lembrar permanentemente o seu acidente voluntário, ou os gestos sensuais de Adriana Prietto quando fala no pai) prejudicam um pouco a secura dessa demonstração irônica, e no terceiro ato a sua nitidez se dilui bastante; mas há, em todo o caso, na encenação de Cleber Santos, uma linha diretriz reconhecível e coerente.

 

O elenco funciona bem como equipe, sustentando esse tom de conjunto imposto pelo diretor, embora individualmente haja desníveis bastante fortes entre os intérpretes. Quem dá, verdadeiramente, o diapasão do tom e o sustenta do início até o fim é Luis Linhares, na sua composição de um Jonas Capeta, autêntico diabo currador, sinistro personagem de uma estranha comédia Dell"Arte. Wanda Lacerda se repete um pouco e sua composição me pareceu um tanto grande dama demais, excessivamente urbana; mas a essência do personagem da crítica ao personagem foi alcançada, com a força de presença de sempre. Achei Virgínia Valli demasiadamente gaiata, quando uma chave mais sinistra - que a atriz seria perfeitamente capaz de executar - me parecia mais adequada. Ginaldo de Souza, muito divertido dentro da sua imperturbável seriedade, tem aqui talvez o melhor desempenho de sua carreira, e também José Wilker, funciona contento, com sensibilidade e acentuado espírito crítico. A excepcional adequação de tipo físico de Adriana Prietto permite revelar, em parte, a sua interpretação ainda bastante fraca e forçada. Thaís Moniz Portinho desenha corretamente a sua figura de viúva, Célia Azevedo funciona sem problemas numa pequena ponta, enquanto Paulo Nolasco, na estréia, pagou um tributo ao fato de ter substituído, em cima da hora, um ator impedido de atuar.

 

A apresentação de "Álbum de Família" marca a reabertura do Teatro Jovem, depois das reformas realizadas na sua sala, e também a volta da companhia de Cleber Santos a produção de seus próprios espetáculos.

 

 

 



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Nelson Falcão Rodrigues nasceu no Recife, em 23 de agosto de 1912, o quinto filho de uma família de catorze. Quando tinha três anos, seu pai, Mário Rodrigues, foi tentar a sorte no Rio de Janeiro, capital da República. O combinado era que tão logo encontrasse trabalho, chamava a família para ir a seu encontro. Maria Esther, sua esposa, não agüentou esperar. Em 1916, empenhou as jóias e mandou um telegrama para o marido, já avisando do embarque naquele mesmo dia. Nelson conta, nas "Memórias" publicadas no "Correio da Manhã", que se não fosse a atitude da mãe, o pai jamais teria permanecido no Rio.