Críticas

Vestido de Noiva

Matéria de 06/02/1943


Em Dezembro do ano passado, indo à redação do"Globo", recebi de Nelson Rodrigues, a quem fui então apresentado, um convite para assistir à sua peça de estréia - "A Mulher Sem Pecado".

 

Confesso que me dirigia à noite para o Teatro Carlos Gomes sem grande entusiasmo. Sou, como Ribeiro Couto,"um homem que vai pouco aos teatros". Não que não goste. Ao contrário: tenho o teatro no sangue. Representei muito quando menino, e sabia conquistar uma platéia. Mas o nosso teatro, com todo o seu repertório"para rir" é uma coisa melancólica demais. Ora, eu costumo fazer minha higiene mental... Não tolero o tom declamado dos nossos atores, a sua insuportável indiscrição de efeitos. Houve tempo em que gostei das revistinhas populares do Rocio. Parecia-me que dali podia sair um teatro brasileiro. Afinal as revistinhas do Rocio esgotaram-se sem dar nada.

 

"A Mulher Sem Pecado" interessou-me desde as primeiras cenas. Senti imediatamente no autor a vocação teatral. O diálogo era de classe - rápido, direto, e por ser assim, facilitaria aos atores a dicção natural, a personagem mais importante - o marido doentiamente ciumento - um falso paralítico em sua cadeira de rodas, criava em torno de si uma vida intensa, a que vinham dar maior relevo as duas personagens mudas, figuras quase que exclusivamente plásticas, sugestionadoras de mistérios inquietantes. A mentalidade mórbida do ciumento acusava-se coerente e convincente, em cada réplica. Afinal a mulher sem pecado acabou pecando... por culpa do marido. E a peça, que vinha bem conduzida, acabou também pecando, e também por culpa do marido, que, no terceiro ato, num verdadeiro"coup de théatre", levanta-se muito lampeiro de sua cadeira de falso paralítico. Pode-se fingir uma loucura, como o Henrique IV de Pirandelo, mas uma paralisia! Mas a peça ficará de pé com o protagonista paralítico de verdade. E até mais justificado no seu tirânico ciúme.

 

Ao sair do teatro, tomei conhecimento da reação do público, que ao sair de lá saiu discutindo, discordando, discorrendo. Remexido enfim. Bom teatro, o que sacode o público. Nelson Rodrigues sacode-o, e tem força nos pulsos.

 

Agora o autor de"A Mulher Sem Pecado" anuncia sua segunda produção. Intitula-se"Vestido de Noiva". Nelson Rodrigues deu-me o prazer de a conhecer"avant da lettre" pela leitura do manuscrito. Pediu-me, como um favor, que a lesse com a maior atenção - "religiosamente". Mau! Pensei comigo: que será quando vista em cena uma peça que, lida, exige tamanha atenção? Fiquei até com medo de não a ter compreendido, acabado a leitura. Nelson sacudiu medroso também.

 

-O caso é assim, disse-lhe: Duas irmãs. Uma furta o namorado da outra e casa-se com ele. Mas a outra era "boa" também, e o cunhado continuou com ela o namoro. Os dois insensatos chegam a desejar a morte da primeira. Chegam a mesmo desejá-la mediante um crime. Mas não foi necessário o crime: a que sobrava é atropelada por um automóvel no Largo da Glória e vai para o pronto socorro. É operada. Morre. Bate o remorso na irmã, que começa a ter vertigens. Mas a perturbação foi passageira. O remorso não resiste a uma breve estação de cura fora do Rio. E ela acaba casando com o cunhado, e estava até "um amor" no seu vestido de noiva. Pelo menos é o que diz a sogra, a D. Laura, que aliás tinha dito a mesma frase no dia do casamento da nora morta.

 

Mas é tão simples! Dirá o leitor. Não é não. O espectador tomará conhecimento do conflito entre as duas irmãs através do delírio da atropelada. Aqui é que se revela a força de um tempo realística e poético de Nelson Rodrigues. Nunca delirei alto em minha vida, e peço a Deus que me livre disso. Mas o subdelírio me é muito familiar: qualquer febrinha deslancha na minha cachola aquela mistura estapafúrdia de realidade e sonho, tão terrível, mas tão cheia de sentido poético. A criação de Nelson Rodrigues é admirável.

 

O progresso de "A Mulher Sem Pecado" para “Vestido de Noiva" foi grande. Sem dúvida o teatro desse estreante desnorteia bastante porque nunca é apresentado só nas três dimensões euclidianas da realidade física. Nelson Rodrigues é poeta. Talvez não faça, nem possa fazer versos. Eu sei fazê-los. O que me dana é não ter como ele esse dom divino de dar vida às criaturas da minha imaginação. "Vestido de Noiva" em outro meio consagraria um autor. Que será aqui? Se for bem escrita, consagrará... o público.

 



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Sobre

Nelson Falcão Rodrigues nasceu no Recife, em 23 de agosto de 1912, o quinto filho de uma família de catorze. Quando tinha três anos, seu pai, Mário Rodrigues, foi tentar a sorte no Rio de Janeiro, capital da República. O combinado era que tão logo encontrasse trabalho, chamava a família para ir a seu encontro. Maria Esther, sua esposa, não agüentou esperar. Em 1916, empenhou as jóias e mandou um telegrama para o marido, já avisando do embarque naquele mesmo dia. Nelson conta, nas "Memórias" publicadas no "Correio da Manhã", que se não fosse a atitude da mãe, o pai jamais teria permanecido no Rio.