Críticas

Vestido de Noiva

Matéria de 04/01/1944


Quando há um ano e pouco tive de me ocupar da representação de "A Mulher sem Pecado", pela Comédia Brasileira, saliento que, embora essa peça me convencesse como importante obra teatral de Nelson Rodrigues, personalidade literária com talento para a produção de trabalhos para o palco, essa peça de fato, não passou de esboço, onde as tendências do escritor para a libertação da moldagem visual se embaraçavam numa série de trivialidades. Estava a obra nas condições do produzir, de quem dá os primeiros passos e quer dizer algo de novo. Simples preâmbulo de esforço realmente criador, este, portanto, apenas prometido como o apontar aqui e acolá, sobretudo no então detalhe - hoje compreendido como uma característica do autor - da desenrolada ação em dois planos apresentados simultaneamente, o exterior e o interior da figura principal. Essa mistura do vulgar com o que se não precisaria, ainda como novo é bom, não podia é claro criar entusiasmo no espectador e só os ouvidos e os olhos especialmente atentos concluíam haver o que aguardar da parte do escritor.

 

Alimentei a esperança de que, a se conservar em sua rota, o Sr. Nelson Rodrigues chegaria ao ponto visado, que é criar obras em que seu pensar, suas intenções artísticas e os seus problemas íntimos se apresentem na forma adequada. Essa esperança nasceu-me do contato com a peça de estréia desse senhor, como em poucas linhas, disse na crônica, e se robusteceu com fatos posteriores nos quais tornei a verificar ser forte o idealismo do escritor.

 

Na quarta feira, com a apresentação de sua obra "Vestido de Noiva", pelos notáveis "Os Comediantes", no Municipal, tive a satisfação de ver confirmada a minha esperança depositada no Sr. Nelson Rodrigues.

 

Não é "Vestido de Noiva" o trabalho definitivo da maneira do jovem escritor. Constitui ainda, mais uma procura de caminho do que uma realização plena. Porém já é o bastante para firmar uma reputação de escritor de teatro e permitir que se diga estar-se, realmente, em frente de alguém que possui forte personalidade e se destina a dar ao palco brasileiro peças que conterão algo de novo e valoroso. E isso porque o Sr. Nelson Rodrigues se afasta da superficialidade para entrar em cheio no que concerne a alma, daí resultando um constante oscilar da ação entre o real visível e invisível. É o que forma a essência de "Vestido de Noiva", onde a vida, num episódio, está como que vista por alguém dotado do poder de apreender matéria e espírito, passado e presente, e de modo simultâneo. Parece-nos o Sr. Nelson Rodrigues, portanto, com o que se poderá chamar um psiquista, isto é, o que em tudo considera a vida psíquica, termo esse que tenho de empregar pois nem psicólogo - criatura que estuda fenômenos do espírito - nem psicologista - pessoa que funde a filosofia com a psicologia - servem para o caso. E tudo encarar psiquicamente, é proceder com profundeza e seriedade.

 

Até onde irá o Sr. Nelson Rodrigues? Não sei com clareza, nem ele tão pouco, mas pressinto que caminhará onde poucos têm passado, conduzidos por essas forças íntimas, que muito possuem do intensamente intuitivo; forças que, quando conjugadas, os fazem enxergar as coisas e os fatos como se subitamente se tornassem transparentes.

 

Não vou discutir detalhes de "Vestido de Noiva", porque isso não importa para o caso, que é o de oferecer dúvida de ser essa peça um acontecimento de larga significação para o nosso teatro.

 

Após o autor, impõe-se que vão as felicitações a Ziembinski, pela notável encenação que realizou, e a Santa Rosa, por ter produzido soberba arquitetura cênica que lembra aquela montagem de cenas simultâneas dos mistérios medievais. A interpretação foi também outro belo triunfo alcançado por "Os Comediantes". Tudo bem cuidado, articulado com esmero, numa harmonia excelente. Estiveram no primeiro plano, impecáveis, Lina Grey, Auristela Araújo, Stela Perry e Carlos Perry. Depois, não menos talentosos e felizes, Maria B. Leite, Luiza B. Leite Sans, Leontina Kneese, Virginia de Souza Neto, Marco Sarli, Edelweiss, Stela Graça Melo, Otavio Graça Melo, Armando Couto, Brutus Pedreira, Álvaro Alberto, Carlos Melo, Isaac Paschoal, Darcy dos Reis, Luis Paulo, Nélio Braga. E completando o grupo, um punhado de meninos da Casa do Pequeno Jornaleiro.

 

O Municipal esteve numa das suas grandes noites: "Os Comediantes" realizaram mais um dos seus memoráveis espetáculos.

 

 

 



Contato
nelsonrodrigues.com.br.
Mail : contato@nelsonrodrigues.com.br
SIGA-NOS
Sobre

Nelson Falcão Rodrigues nasceu no Recife, em 23 de agosto de 1912, o quinto filho de uma família de catorze. Quando tinha três anos, seu pai, Mário Rodrigues, foi tentar a sorte no Rio de Janeiro, capital da República. O combinado era que tão logo encontrasse trabalho, chamava a família para ir a seu encontro. Maria Esther, sua esposa, não agüentou esperar. Em 1916, empenhou as jóias e mandou um telegrama para o marido, já avisando do embarque naquele mesmo dia. Nelson conta, nas "Memórias" publicadas no "Correio da Manhã", que se não fosse a atitude da mãe, o pai jamais teria permanecido no Rio.