"A Mulher Sem Pecado": peça em três atos de Nelson Rodrigues
Matéria de 11/12/1942
É de todo ponto louvável o esforço de
Nelson Rodrigues por encontrar novas formas de expressão para o teatro,
materializando, pela imagem, as lutas psicológicas que se travam no interior
dos indivíduos e que são para a existência humana bem mais importantes e
cruciantes que a luta pela vida. Com o intuito, talvez, de impressionar mais
vivamente o auditório, teatralizou um novel autor uma psicose que, como todas
as psicoses nutrem-se de irrealidades e incoerências, mistura os sentimentos
primários com os "complexos" de origem confusa e desenvolvimento
sinuoso. Tornou dessa fórmula, difícil a percepção das massas e mesmo do
auditório de cultura dramático literária mediana, seu esforço inovador; lançou
a idéia, mas não soube aproveitar-se dela assegurando-lhe o sucesso. Daí a
desagradável impressão do espetáculo maçador que "A Mulher sem
Pecado" injustamente nos deixa, falando do ponto de vista do público em
geral. Agravou essa impressão a presença de símbolos ou de imagens sem
explicação imediata ou remota, a velha mãe paralítica, imobilizada e muda para
sempre por um derrame cerebral e o fantasma de um mendigo, mudo por sua vez. O
outro fantasma, a primeira mulher falecida e que só o cérebro do enfermo, que é
o protagonista, vê e ouve, apresenta-se sempre estranhamente, com as cores de
vida e em toillete de noite. Por quê? O natural, tanto ela quanto o mendigo, é
que se revestissem do aspecto clássico dos defuntos, com a palidez cadavérica,
ao menos. Isso impressionaria mais ao auditório e explicaria melhor o que o
autor pretendeu fixar.
Além disso, Nelson Rodrigues, fascinado
pela figura de perturbado mental que criou, não limitou a irrealidade ao que
ela faz, diz e sente, derramou-a pelas demais personagens, sincronizando-as e
tornando, assim, monótona a ação. O chofer, que se aproveita duma situação, não
agiria na vida real pelo modo porque o que ali se apresenta e se conduz, nem a
esposa, diante das amargas, ofensivas, injustas invectivas do marido daria as
réplicas que a do drama dá. Não se valeu, portanto, do contraste que
emprestaria maior vibração daqueles momentos. Estabelece, assim, uma confusão
grandemente prejudicial ao sentido da peça, altamente nociva se a tivermos de
considerar, não como literatura, mas como teatro.
Seria estúpido, porém, negar valor a obra,
que é deveras interessante como esforço de transposição de teatro há um plano
mais elevado, no sentido de análise da criatura humana por dentro, como
pretendeu Pirandello. Ficamos à espera de novas peças de Nelson Rodrigues desse
teor, em que o jovem escritor não procure dificultar o entendimento do que
deseja expressar, como o fez, evidentemente empolgado por sua bela idéia, em
"Mulher sem Pecado".
A interpretação atingiu um alto grau de
homogeneidade, que já é e será mais ainda, no futuro, a principal qualidade dos
espetáculos da comédia brasileira. Teixeira Pinto, Amélia de Oliveira e Rodolfo
Mayer, rivalizam-se em sinceridade, na segurança de suas inflexões e
naturalidade de gestos e atitudes. Os demais, Guiomar Santos e Arando Coutinho,
como Isabel Camarra e Jun Mamoré, em papéis mudos concorreram para boa
impressão que a interpretação causou.