Entrevistas

“Teatro não ter que ser bombom com licor”

Matéria de 07/12/1974



Nelson Rodrigues continua: “Teatro tem que humilhar, ofender o espectador”. Uma opinião que foi gravada no Rio, quarta-feira passada, para o Museu do Teatro. E que faz parte de um longo depoimento que você vai ler agora. 


“Nasci no dia 23 de Agosto de 1912, no Recife. Vim para o rio com quatro anos. Meu pai tinha se mudado para o Rio, perdeu o emprego e ia voltar para Pernambuco. Minha mãe vendeu as jóias, telegrafou a meu pai: “Vou com as crianças”. Pegamos um vapor. Por esse gesto de minha mãe, eu me tornei carioca.

“No Rio almoçávamos numa pensão. A mesa era um caixote de querosene. Aos seis anos, fui para escola, na rua Alegre. D. Rosa, a professora, era uma senhora de narinas apertadas. Eu era pobre, levava uma banana de merenda e me sentia orgulhoso. No recreio, um garoto desembrulhou um sanduíche de ovo, que humilhou e liquidou minha banana. Não jantávamos. A comida única era o aipim.

“Fui o garoto mais puro do mundo. O sexo produzia em mim um sentimento de culpa. Eu sentia atração, mas não ia à ação. Me apaixonei por todas as professoras. Mulher feia não existia para mim. Eu não disse um palavrão até os dez anos, seria perder minha alma.

“Aos 13 anos me tornei repórter de polícia do jornal A Manhã, que meu pai dirigia, com o belo ordenado de 30 mil réis. Aos 14 anos escrevi A Tragédia de Pedra, que foi um sucesso. Fiquei deslumbrado comigo mesmo.

“Meu irmão Roberto foi assassinado quando tinha 17 anos. Não que tivesse culpa. A assassina declarou no jornal: “Vim para matar Mário Rodrigues, ou um de seus filhos”. Como o criminoso é secundário, nulo, diante da vítima. É como se fosse um marginal do acontecimento. Ninguém se interessou pela criminosa. E esse assassinato está marcado no meu teatro, nos meus romances, nos meus contos. Minha biografia está refletida na minha obra. Todo o autor é autobiográfico e eu sou. O que acontece na minha obra são variações infinitas do que aconteceu na minha vida.


“TODA UNANIMIDADE É BURRA”

“Esse crime me mudou inteiramente. O fato de um sujeito morrer por ser filho do meu pai, que por sua vez não tinha nada com o peixe, me deu horror da opinião pública. Toda unanimidade é burra. A maioria geralmente está errada. Tenho horror de eleição. Querem que quarenta milhões de pessoas julguem como se fossem Aristóteles ou Platão. Uma das maiores peças do mundo é um Inimigo do Povo, de Ibsen. O protagonista diz, no final, que o grande homem é o que está mais só. Por isso brinquei com minha classe teatral, quando andava em comícios, assembléias e passeatas. Sou o que está mais só.

“Depois da Revolução de 30, empastelaram o jornal do meu pai. Meu pai havia morrido um mês e tanto depois da morte do meu irmão. Ele previa que ia morrer de paixão. Eu e minha família começamos a passar fome. Uma vez, das entranhas do arroz e do feijão saiu uma barata. Quem pensa que eu não ia comer é um alienado total, nunca passou fome. Comi sem o menor escrúpulo, pois não tinha comido nada naquele dia.

“Caí doente do pulmão. Era uma época em que tuberculose não era sopa. Gente tomava formicida quando sabia que estava tuberculosa. Fui para o Santorinho de Campos de Jordão. Sarei depressa, voltei. Meu irmão Jofre pegou uma tuberculose violenta, foi para o sanatório de Correias e lá morreu. Eu recaí: tinha passado 15 dias sem comer. Fui outra vez para Campos de Jordão. Recaí mais três vezes: tive, ao todo, cinco agressões de tuberculose.


“DEVO MUITO AO FOLHETIM”

“Aí vieram A Mulher sem Pecado e, depois, Vestido de Noiva. Com o sucesso de Vestido de Noiva, fiquei inimigo pessoal de todos os outros autores brasileiros. Passei a escrever coisas que outros assinavam contra outros autores. Eu tinha uma vaidade feroz. Hoje me apazigüei e estou tranqüilo. Posso ser pior que outros autores, mas me sinto diferente. Se eu tivesse que dar um conselho, diria aos mais jovens: não façam literatice. O brasileiro é fascinado pelo chocalho da palavra. Aos 13 anos escrevi: “O crepúsculo era uma apoteose de sangue”. Hoje é difícil eu cair no pecado da literatice.

“O mau gosto é uma das contribuições decisivas do meu teatro. Quando fiz Senhora dos Afogados, a única pessoa que não se horrorizou com o eczema de uma personagem foi Gilberto Freire. Bibi Ferreira, que montou a peça, achava horrível. Com meu teatro, perdeu-se também o sotaque lisboeta. Leopoldo Froés tinha esse sotaque. Chaby Pinheiro, que era portuguesa, tinha menos sotaque lisboeta do que Froés.

“Tenho uma profundíssima admiração por Eugene O Neil. Mas, se eu tiver de reconhecer uma influência, acho que ela é de Dostoievski. Uma influência que quase não se pode chamar de influência, tanto que ninguém diz que ela existe.

“Fernando Montenegro passou oito meses telefonando para mim para eu escrever uma peça. Achei linda a obstinação da “musa sereníssima”. Ela achava que era inútil, mas insistia. Fiquei deslumbrado quando fiz a peça. Estava cumprindo minha palavra. Eu subi no meu próprio conceito quando entreguei à Fernanda o Beijo no Asfalto.

“A Morta Sem Espelho, que escrevi para TV Rio, foi a primeira novela da história das novelas. A Censura, sem querer conhecer o assunto, disse que jamais permitiria uma obra minha às oito da noite. E era uma história de Delly.

“A parte folhetinesca que existe em minha obra me deu plasticidade e segurança técnica. Suzana Flag, o pseudônimo que usei para Meu Destino É Pecar, me equipou como novos recursos técnicos. Devo muito ao folhetim. Dostoievski tem cenas de novela da Rádio Nacional.   


“ACHAVAM QUE ERA UM TARADO”

“O Filme A Falecida, de Leon Hirszmann, mutilou a parte de humor que há na peça. O humor é um dos elementos mais obrigatórios do meu teatro. Meu teatro tem a simultaneidade do patético e do humorístico. Arnaldo Jabor está filmando O Casamento, que é da pesada. Ninguém gostou do romance, a não ser eu. Depois comecei a encontrar tresnoitados e fiquei deslumbradíssimo. É uma das minhas obras mais queridas. Jabor vai enfrentar uma batalha sangrenta.

“No filme A Falecida, Nelson Xavier representava um cafageste carioca dionisíaco como se fosse Laurence Olivier. Eu lhe dizia: “Você está um lorde, um marquês. Você não está na Câmara dos Comuns, mas numa funerária de quinta classe”. Depois ele veio me dizer que eu tinha razão.

“Eu escrevo rápido, a história é começar. Tenho mil peças, milhares de personagens. Nada me falta. É só fazer. Agora, tive problemas de saúde. Eu começava a escrever à meia noite e ia até de manhã. Fiz Vestido de Noiva assim: meio ato num dia, meio ato num outro. Depois reescrevi, ampliando, dando densidade às cenas. Eu nunca dizia que tinha feito tão rápido, se não ia me desmoralizar. Eu dizia que demorava seis meses para escrever uma peça, abismado com meu cinismo.

“Tenho seríssimas dúvidas a respeito do entusiasmo dos meus elencos pelas minhas peças.  O pessoal leva em conta é meu nome. O fato de eu ser conhecido. Minha figura dá publicidade, os jornais abrem espaço para mim. Os elencos concordavam com um espectador e uma manchete de jornal, para os quais eu era um tarado. Cinco atrizes se recusaram a fazer o papel de Toda Nudez Será Castigada, que Cleyde Yáconis interpretou. Eu pensava até em seduzir a provável intérprete com um pagamento extra.


“TODO MUNDO É MÓRBIDO”

“Muita gente me acha mórbido. A crítica paulista acusou Bonitinha, mas Ordinária de morbidez. Disseram também que está ultrapassado o problema da virgindade. Mas será que acham que não é nada uma curra empresada pela própria vítima? A morbidez é uma das dimensões mais humanas do meu teatro. Todo mundo é mórbido.

“O que mata a nova geração de teatro no Brasil é o “caco” (invenção do ator, não pertencente ao texto). Considero isso uma volta à pré-história do teatro. Minhas provações com o “caco” só são comparáveis às de Jô. Se insistirem no “caco”, reduzo meu teatro à literatura  e em vida não deixarei mais que ele seja representado. Neste momento, com a maior seriedade, faço o elogio do diretor burro. O inteligente é o inimigo n 1 do teatro. Falsifica as peças. Acha “caco” criatividade.

“Nosso amigo Millôr Fernandes diz que traduz Shakespeare e melhora. Não ouvi ele dizer a frase, pr isso cito com ressalva. Ninguém tem o direito de pegar um texto alheio e mudar. Contaram a Tenesse Williams que Marlon Brando estava fazendo misérias com Um Bando Chamado Desejo. Tenesse Williams acabou indo ver o espetáculo. Marlon Brand, com um descaramento de ator de fama mundial e que se julga acima de qualquer autor, levou Williams dizer: “o que Marlon Brando diz por conta própria é mais criativo do que meu texto”. É óbvio que ele estava fazendo deboche. Só a título de piada se admite a observação. Imaginem Brailowsky misturando um noturno de Chopin com “Mamãe, eu quero é mamar...”. Os diretores inteligentes, quando escrevem no programa, são filósofos alemães, de uma total impenetrabilidade.

“Fui encerrar, na escola de Comunicações e Artes da USP, um curso de Pós-Graduação sobre o meu teatro e depois li os trabalhos dos alunos. Fiquei besta. Nunca vi nada mais profundo, de não se entender uma frase. Quando pensei em fazer uma peça, era o sujeito mais obscuro do Rio de Janeiro. Tinha uma miséria de Raskolnikoff, embora sem intenção homicida. Escrevi A Mulher Sem Pecado em 1939. Só a maturidade me permite confessar que, até fazer Vestido de Noiva. Só tinha lido uma peça: Maria Cachucha, de Joracy Camargo. Na infância, vi Alda Garrido em burletas de Freire Junior. E isso embora tivesse uma monstruosa leitura literária. Pouca gente no Brasil conhece romance como eu conheço. Como eu tinha problemas econômicos, pensei que se escrevesse uma chanchada ia ganhar dinheiro. Comecei A Mulher Sem Pecado. No meio da primeira página, já era uma peça tenebrosa e foi assim até o fim.

“Diz-se que Ziembinski remanejou Vestido de Noiva durante os ensaios. Afirma a Luiza Barreto Leite que o Ziembinski reescreveu a peça comigo. Esta senhora mentiu de maneira mais deslavada. Ziembinski deu de fato uma contribuição: a expressão “pois é”. Como polonês, ela achava “pois é”uma coisa linda. Mas ele queria que eu terminasse a peça com a morte da heroína. Acabei dobrando Ziembinski.


“TEATRO É UM ABSCESSO”

“Vestido de Noiva teve o tipo de sucesso que cretiniza um autor. Parti para uma coisa mais salvadora, para Álbum de Família, que é um anti-Vestido de Noiva. O teatro é mesmo dilacerante, um abcesso. Teatro não ter que ser bombom com licor. Tem que humilhar, ofender, agredir o espectador. Quase fiz uma peça onde o segundo ato todo era um ato sexual com variações delirantes. Lamentavelmente não fiz a peça.

“É preciso ir ao fundo do ser humano. Ele tem uma face linda e outra hedionda, acho mais importante a hediondez. O ser humano só se salva se reconhecer a própria hediondez. Eu me proponho a reconhecer a hediondez.

“Para glória e alegria profunda, tenho uma massa de desconhecidos íntimos. Quando me reconhecem na rua, fico satisfeitíssimo. Um dia atropelei uma velhinha, que, rodopiando, quase se despetalou. Peguei-a e ela falou: “Nelson Rodrigues” Fiquei maravilhado.

“Senhora dos Afogados, Anjo Negro, Álbum de Família, Doretéia são peças que não tiveram ainda a sua vez. Vestido de Noiva atrapalhou pra burro. As pessoas admiram Vestido de Noiva e ficam quites com a inteligência e o bom gosto. Essas outras peças eram problemas críticos. O crítico não quer nada com problema. Minha amiga pessoal Bárbara Heliodora escreve há 30 anos sobre Shakespeare porque há uma biblioteca sobre ele e se faz outra, tirada da anterior. Assim sucede na vida intelectual do país. Acham Nelson Rodrigues um brasileiro que vem escrever obscenidades, dizer palavrões. Nos primeiros 15 anos não escrevi um palavrão e todo o mundo ia para casa certo de ter ouvido 300.


“SOU TUDO, MENOS IMORAL”

“A linguagem é a minha maior contribuição ao teatro brasileiro. Quando levaram A Falecida no Municipal do Rio, eu passava pelo corredor num intervalo e ouvi: “Mas falar me futebol no Municipal?” Era uma desolação sincera e honesta. Eu estuprara o Municipal com futebol. Isso era o teatro, a minha linguagem. Manuel Bandeira leu Vestido de Noiva e disse: “Me surpreende e agrada que seu teatro não tenha literatice”. Vestido de Noiva não faz a menor concessão à subliteratura.

“Se a evidência quer dizer alguma coisa, afirmo que sou um ator moralista. Posso ser tudo na minha vida, como autor ou como homem, menos amoral. Se porventura muitos não perceberam isso, lamento a cegueira profunda e irreversível. Eu me lembro de Dostoievski, que diz: “Se Deus não existe, tudo é permitido” Eu acredito em Deus.

“Eu me considero um homem absolutamente solitário, embora julgue um amigo, um acontecimento. Amigo é o essencial. E é duro encontrar um amigo. Por isso eu me afago tanto com o desconhecido íntimo. Ele está praticando um ato de amor.” 



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Sobre

Nelson Falcão Rodrigues nasceu no Recife, em 23 de agosto de 1912, o quinto filho de uma família de catorze. Quando tinha três anos, seu pai, Mário Rodrigues, foi tentar a sorte no Rio de Janeiro, capital da República. O combinado era que tão logo encontrasse trabalho, chamava a família para ir a seu encontro. Maria Esther, sua esposa, não agüentou esperar. Em 1916, empenhou as jóias e mandou um telegrama para o marido, já avisando do embarque naquele mesmo dia. Nelson conta, nas "Memórias" publicadas no "Correio da Manhã", que se não fosse a atitude da mãe, o pai jamais teria permanecido no Rio.