Entrevistas

Comunismo foi pior experiência nos últimos 30 milhões de anos


O táxi pára em frente a um edifício da Avenida Atlântica, relativamente simples, de nome Sabará. Lá mora ou esconde, como ele mesmo diz, Nelson Rodrigues, o teatrólogo, dramaturgo, jornalista, escritor e fluminense doente, que à essa altura (15h 20min) deve estar impaciente a nossa espera.

O apartamento do velho jornalista é no terceiro andar do prédio. Lá, uma moça, Joana, nos atende e explica que Nelson não está, no momento. Aliás, tinha saído por volta das 13 horas. Ele esquecera a entrevista. Pergunto à empregada se ela tem idéia de onde podemos encontrar o Nelson e ela diz que não. É, como esperava, uma pessoa imprevisível. Saio então a sua procura pelas ruas de Copacabana. Num banco na beira da praia, velhinhos estão sentados lendo jornais e discutindo política. Imagino o Nelson entre eles, falando do seu Fluminense, de suas mulheres adúlteras.

A noite, no jornal, resolvo ligar para Nelson, mesmo achando que ele não estaria em casa. “Si Senior Nelson Rodrigues? Um minutinho por favor”, diz a voz de mulher com forte sotaque castelhano. Logo em seguida: “Minha flor...Lisura de pontualidade” – soa a voz de Nelson Rodrigues discursiva do outro lado do telefone. “pedirei perdão de joelhos por esta falta”. Envergonhada, confesso que também me atrasara e ele marca novo encontro, desta vez para Quarta, às 15 horas.

Numa  cadeira do papai, Nelson Rodrigues convalece de uma doença, que a conselho de sua irmã, não nos revela. A conversa, tanto tempo esperada, dura mais de uma hora. Entre cafezinhos que nos são servidos por uma senhora simpática com forte sotaque casteliano, Nelson conta, com seu jeito característico de falar, coisas de sua ida e de seu novo livro, “O Reacionário”, que em breve estará nas livrarias, sob a responsabilidade editorial da Record.

Segundo ele, é uma autobiografia: “reuni confissões e memórias. O sujeito que ler o livro poderá me ver por dentro. Recordo quando, aos 13 anos de idade, entrei para o jornalismo como repórter de polícia. Esta opção eu explico: eu tinha muita curiosidade pelas adúlteras, as adúlteras que o marido mata ou que se mata ou nem uma coisa nem outra e continua traíndo”.

“Terminei o capítulo anterior com a infiel saltando de uma janela. Era dia útil, hora de movimento. Imagino a pergunta do leitor: - Morreu? Eu responderei citando Machado de Assis. Segundo este, é melhor cair das nuvens do que de um terceiro andar. Pois a infeliz caiu do terceiro andar em cima de um toldo de lona. Foi um assombro na rua. De repente, todos viram aquela mulher voar pela janela, virar duas cambalhotas e derramar-se dois andares abaixo. Saía pela janela – prossegue Nelson em suas confissões e memórias – como entrará pela porta, isto é, vestidíssima. Desabou de chapéu, e o que é mais surpreendente, de sombrinha. Havia, na época, uma modinha de forte sugestão erótica que dizia assim: “Cobre, me cobre, que eu tenho frio”. (Não sei porque, falei da modinha). Foi um corre-corre na Rua Ramalho Ortigão. Os curiosos, embaixo, podiam perguntar: “- Porque a sombrinha?” Seja como for, foi um escândalo total. Era uma senhora gorda numa época de gordas. Em 1920, quem não era gorda? Tinha os flancos fortes, potentes de fecundidade. E, todavia, o toldo de lona suportou o baque e não houve morte, nem fratura, nem nada. A infiel foi recolhida, salva. E desceu abraçada à sombrinha. Quanto ao sedutor, o deixamos embaixo da cama. No quarto, está o marido armado e homicida. Como a adúltera saira pela janela, o Casanova deveria  ser a vítima única e obrigatória. Disse eu que o marido puxara o revólver. Engano. Em vez de revólver, leia-se bengala. Naquele tempo ainda se lavava a honra a bengaladas. E, no entanto, aconteceu esta coisa surpreendente: - a partir do momento em que a culpada se atirou de cabeça, o amante tornou-se um pobre diabo, secundário e irrelevante e, eu diria mesmo, inexistente. O senador foi à sacada espiar o resultado da queda. Do alto viu a mulher esperneando em cima do toldo. Dois ou três latagões retiraram do toldo a traidora. Rouca de pavor só dizia: “Ele quer me matar! Ele quer me matar!”. “Ele quem?”- perguntaram. E ela: “Meu marido!” Eis que surge, ali, o marido arquejante. A mulher era uma menina de medo:- “Não quero morrer!” Mas era evidente que o marido perdera toda e qualquer intenção homicida. Veio para a mulher, lançou-se nos braços da mulher, ela nos dele, os dois aos soluços”.

Nelson, visto de perto, parece uma pessoa ainda mais contraditória que aquela que conhecemos de ouvir dizer, ou mesmo através de reportagens em jornais e revistas. Mesmo mantendo, desde o tempo do Governo Getúlio Vargas, uma luta de foice com a Censura, o escritor ao mesmo tempo, insiste em autodenominar-se “reacionário”.

Em termos políticos, não vacila em dizer “Sou um democrata”. Quanto ao partido político, no entanto, ele depende “da hora e do candidato que mais gosto. Tanto voto na Arena como no MDB”.

Interrogado sobre o fim da censura, diz Nelson: “a censura nunca mudou e nem mudará. Só a mudança geral pode fazer com que ela caia. De mais a mais uma mudança política muito extrema nos levaria ao socialismo, que tem um tipo de censura muito mais feroz”.

“No meio de um sarau de grã-finos, sou apresentado a um dos decotes presentes. Inclino-me: -Muito prazer. E o decote: - O senhor é que é o Nelson Rodrigues, o reacionário? Digo-lhe: - Exatamente. Nelson Rodrigues, o reacionário. Insiste: O senhor é reacionário e ainda confessa? E eu: - Pois é. O decote faz um comício: “Pessoal! Venham ver um reacionário”. Outros decotes aparecem. Senti-me olhado como um urso de feira. Uma grã-fina veio me dizer: - “Aposto que você é contra a educação sexual”.

Perguntamos a Nelson porque o forte conteúdo político e social de suas peças, já que ele se diz uma pessoa reacionária. A resposta é imediata: “A minha ficção é uma coisa. E eu posso ser outra. Apesar de teatralizar as ignonímias da ordem burguesa eu devo dizer que as ignonímias dos países socialistas são muito piores”.

Em seu livro “O Reacionário”, Nelson afirma que “o povo é um débil mental. Eu e o filme (refere-se a “Terra em Transe” de Glauber Rocha) dizemos isso sem nenhuma crueldade. Foi sempre assim e será assim, eternamente. O povo pári os gênios, e só. Depois de os parir volta a babar na gravata”. Mais adiante, ainda falando do Glauber:

“Glauber Rocha nos dá um vômito triunfal. “Os Sertões” de Euclides da Cunha também foi o Brasil vomitado. E qualquer obra de arte, para Ter sentido no Brasil, precisa ser esta golfada hedionda”.

Após quase 30 minutos de conversa sobre os mais diversos temas, Nelson volta a falar de seu reacionarismo, que conforme explica: “começou nos meus 11 anos de idade. Um dia, numa redação de jornal eu ouvi um comunista dizer a um amigo: “Se o Partido mandasse eu mataria você”. Nada descreve o horror do menino que eu era. Aí eu percebia que o comunista era o anti-homem e a anti-pessoa”.

Afastado do jornalismo (no momento, Nelson apenas escreve sua coluna de futebol para um jornal carioca) Nelson Rodrigues se diz decepcionado com tudo e todos. “A experiência jornalística me deu uma certa visão do mundo. O mundo visto da redação é realmente hediondo. Numa das crônicas do meu novo livro eu digo, num certo momento: o homem fracassou. Se houvesse uma guerra nuclear e acabasse o mundo não se perderia grande coisa. Mas repito, a experiência comunista é o que há de pior nos últimos trinta milhões de anos. O meu anticomunismo (ele não percebe e repete essa convicção várias vezes durante a entrevista) começou na minha infância profunda e continuará para além da vida e da morte. Muitos dizem: “eu não sou comunista, nem anti-comunista”. Eu considero isso de um cinismo admirável”.

Interrogado sobre as acusações feitas contra o Bispo Dom Pedro Casaldaglia, de que ele seria comunista, Nelson responde que “eu entendo que um cristão comunista é uma impossibilidade. Os que fazem o jogo dos comunistas pertencem à anti-igreja e ao anti-cristo”.

Nelson, ao contrário do que esperava, é favorável ao divórcio: “o divórcio é uma solução para os casamentos que apodrecem. O divórico é, na pior das hipóteses, uma tentativa. O homem parte para nova experiência matrimonial e tem este direito, já que falhou na primeira vez”.

À esta altura da conversa, Nelson Rodrigues pede para fazer uma declaração contra qualquer tipo de censura a liberdade de pensar, artística e de agir: “a censura em vários governos querem impedir a minha liberdade artística. Estou repetindo mais não faz mal. É sempre bom lembrar. Eu não faço concessões (neste ponto ele se altera um pouco. Dedo em riste): põe aí, tá entendendo? Eu não faço concessões. Isso deve ficar claro. Não mudei nunca os meus textos”.

- O senhor prefere ter seus textos impedidos a ter de reescrever alguns trechos?

Minha pergunta irrita visivelmente o Nelson, que declara:

- Minha filha. Tenho sete textos totalmente impedidos, que não vou citar aqui porque todo mundo sabe e nunca mudei nem pretendo mudar uma vírgula sequer. Antes, eu tinha a esperança que alguma autoridade mais inteligente os liberasse, mas hoje, até isso se acabou. Não admito que um artista censure os próprios textos. Todas as censuras, inclusive as do Sr. Vargas me trataram da mesma maneira. O artista não tem que ceder nunca. Tem que ser irredutível. Nos países socialistas, o único indivíduo livre é o suicida: o sujeito mete uma bala na cabeça e assim consegue a sua liberdade”. Nelson Rodrigues admite no entanto que “não vi em minha vida, uma censura mais forte que a do regime do Vargas. Mas eu gostaria, por uma questão de justiça, citar o nome de Vargas Netto, sobrinho do ex-presidente e que por várias vezes salvou textos meus”.

São quase 16h30min e ainda há muito o que perguntar ao velho jornalista. Ficaríamos horas a fio e talvez dias ouvindo Nelson com seus casos de mulheres suicídas, jogadores de futebol e citações de Machado de Assis. A senhora argentina vem nos trazer até a porta do elevador junto com Nelson e as paredes decoradas com posters do filmes “Toda Nudez Será Castigada” de Arnaldo Jabor, baseado no Nelson, a peça Vestido de Noiva, ficam para trás. Nelson de repente se lembra que mais um filme, baseado em uma obra sua, cujo roteiro e diálogos também são seus e está para sair e pede para lembrar ao público: “A Dama do Lotação está para chegar. Vem com Sônia Braga e grande elenco. O diretor é Neville de Almeida”.



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Sobre

Nelson Falcão Rodrigues nasceu no Recife, em 23 de agosto de 1912, o quinto filho de uma família de catorze. Quando tinha três anos, seu pai, Mário Rodrigues, foi tentar a sorte no Rio de Janeiro, capital da República. O combinado era que tão logo encontrasse trabalho, chamava a família para ir a seu encontro. Maria Esther, sua esposa, não agüentou esperar. Em 1916, empenhou as jóias e mandou um telegrama para o marido, já avisando do embarque naquele mesmo dia. Nelson conta, nas "Memórias" publicadas no "Correio da Manhã", que se não fosse a atitude da mãe, o pai jamais teria permanecido no Rio.