Asfalto Selvagem - Nelson Rodrigues, romancista
Matéria de 23/01/1965
Há, em "Asfalto Selvagem", quatro
personagens-tipos que ilustram bem a problemática nelsoniana e dão a medida dos
poderes reais do romancista. Por ordem cronológica, mas não de importância na
estrutura do romance: dr. Odorico, Engraçadinha, Amado Ribeiro e Leleco.
No século, dr. Odorico é um juiz de direito
típico. Já deixou de ser moço. Está naquele idade quase canônica de certa
expiação diante da beleza da vida. As roupas convencionais do cargo, embora sem
o colete de antigamente. O trabalho que foi duro, contínuo e quase sempre
monótono. A má remuneração que, mensalmente, faz do seu orçamento doméstico um
discreto drama financeiro entre quatro paredes. A circunspecção exterior e, no
íntimo, o ressentimento do injustiçado.
Se, no século, dr. Odorico é assim, em
"Asfalto Selvagem" é, mais que um homem, um personagem. Liberam-no de
certas limitações do registro civil alguns acidentes psicológicos pessoais não
arrolados em cédulas de identidade: um amor (proibido), o desconhecimento
ginasiano da psicologia feminina e, afinal, a consciência ainda viva da
importância social do seu cargo.
Dr. Odorico ama (ou deseja, apenas) "a
outra": Engraçadinha. Um pouco por contaminação cultural, um pouco por
"predisposição" biológica. Engraçadinha é uma vigarista do amor. E,
calculista, resiste ao assédio ingênuo, mas persistente do meretíssimo.
Desorientado, mas fiel ao romantismo de sua geração, dr. Odorico tenta apressar
a rendição, que tarda demais, através (vejam só) de um soneto de amor.
O expediente falha. E o meritíssimo tenta,
então, a cartada final.
Estuda, com carinho forense, o que se
poderia chamar de processo de semipobreza do lar da mulher amada (ou desejada).
E conclui, intimamente satisfeito, que - naquela pequena casa modesta de uma
cidade-verão como é o Rio - uma geladeira de quatro pés haveria de fazer o que
não fizera o soneto de amor. E compra a geladeira "para presente".
Mas a prestação, como convém aos vencimentos de um juiz.
Caricatura de meretíssimo? Não; dr. Odorico
não é Juiz, mas um juiz. Não pretende ser uma classe ou carreira mas,
modestamente, um ser humano. Claro que com sua melancolia específica, tecida de
sonho, de ingenuidade, de frustração, de torpeza, tecida de vida.
Figura quase central de "Asfalto
Selvagem", Engraçadinha é mais que personagem inteligível no contexto da
cultura carioca de subúrbio. É, essencialmente, um estado de espírito.
Neurótico, sem dúvida. Mas nem por isso menos ausente (pelo menos do ponto de vista
estatístico) da família média urbana do Brasil. Claro que as outras
"engraçadinhas" não se revelam geralmente em estilos de comportamento
ou de gestos exteriores. Só se mostram engraçadinhas (a olhos ou ouvidos mais
experientes) naquele território quase indevassável de suas fantasias eróticas,
que a "inquisição" das leis e dos códigos desconhece.
Sob o ângulo da moral vigente, Engraçadinha
divulga as reprováveis "fraquezas" larvares do inconsciente feminino.
Será uma espécie de Eva sem pudor, nestes tempos de mísseis de monoquinis. Mais
"sexy" e, sem dúvida, com mais imaginação criadora que a Eva bíblica.
Vista, porém, de um ponto de vista mais científico, isto é, mais humano, ela
será apenas, uma sofrida pungente. A frustrada. A irrealizada. Um retrato
verossímil da certa mulher pequeno-burguesa e enferma da emoção, atormentada
pela inflação e por certo desejo de mar com a autenticidade que não encontra no
próprio lar. Ainda que, por isso mesmo, pareça sórdida quando é apenas doente.
Criando-a, Nelson Rodrigues deu à ficção
brasileira (em geral pobre em matéria de análise da mulher falsa ou
autenticamente amorosa) uma personagem que nem por ser neurótica deixa de ser
feminina. Uma personagem que, embora às vezes de modo jornalisticamente
esquemático, dá, a certo inconsciente feminino, direito de cidadania em nossa
ficção.
Amado Ribeiro é o "escroque" da
reportagem policial. Um magnífico tipo de romance, para que só a decência não
merece notícia ou "manchete" de jornal. Amado: mais que prenome,
adjetivo. Uma espécie de anti-Garini da reportagem de polícia. O que nunca
saberá, como o paulistano A. J. Garini sabe e nos faz saber, que no submundo
dos marginais pode haver poesia, filosofia e até humanidade.
E, finalmente, Leleco.
Há, na ficção brasileira, alguns
personagens tentando exprimir a tragédia moral da nossa presente juventude de
asfalto. Alguns, excelentes. Mas nenhum, a meu ver, com a dilacerante verdade
humana do Leleco de Nelson Rodrigues.
Leleco é obrigado a cometer um crime de
morte principalmente por dois motivos: a) defender sua condição de homem; b)
evidenciar objetivamente sua capacidade física e, por isso mesmo, emocional de
amar Silene, filha de Engraçadinha e, como esta, vigarista de sua obscura
insatisfação sexual.
Como se vê, um homicídio é a condição
fortuita de ele ver-se homem, com alegria. Mas o homicídio foi praticado
verdadeiramente pela criança desamparada e quase sem carinho que havia em
Leleco; pela criança cujo descontrole emocional era outro nome duma ausência
moral da mãe.
Sem qualquer exagero: Leleco é, na ficção
brasileira mais recente, um estudo admirável na timidez romântica de certa
mocidade que se acredita corajosa e livre porque instituiu e pratica o rito
tribal da "curra" e a fuga para os falsos nirvanas da maconha.
Leleco tem a dolorosa verdade humana de
certos personagens de "O Ateneu". Com uma vantagem: Nelson fê-lo
vivo, existencialmente situado como um soluço humano que se faz, de repente,
alegria de viver. Sem certa ganga declamatória que às vezes empobrece,
psicológica e literariamente, alguns adolescentes de Raul Pompéia.
Criar personagens assim, com tão plásticas
dimensões humanas, é privilégio dos grandes romancistas.
Um romancista do naipe de Nelson Rodrigues
não tem, contudo, o direito de criticar, por ciúme emocional, a ficção ou o
estilo de outros escritores, também grandes. Em "Asfalto Selvagem",
Nelson Rodrigues deu essa demonstração de injusta fraqueza pessoal diante de
Guimarães Rosa e de Gilberto Amado. É verdade que teve a prudência ou o senso
de "humor" de divulgar sua inveja pela boca de personagens sem nome.
O expediente é divertido. Mas não honra a
inteligência do autor.
Compreende-se que, por ternura ou ironia,
Nelson Rodrigues transforme amigos íntimos, como o jornalista Wilson
Figueiredo, do "Jornal do Brasil", ou o escritor Otto Lara Resende,
em personagens de seu romance.
Compreende-se que os nomes se certos
figurões da alta política figurem, em "Asfalto Selvagem", como
pretexto para Nelson esbanjar o que seu instinto de romancista tem de
familiaridade com o picaresco e com certo ridículo da condição política. Mas a
prosa do romancista Guimarães Rosa e a do memorialista Gilberto Amado são, como
todos sabem, excepcionais. A do autor de "Grande Sertão: veredas",
talvez mais trabalhada pela semântica antes dos textos que da vida. A do autor
de "História de minha infância", vinda principalmente do fluir
visceral da História.
Ambas, porém, tão autenticas quanto o
urbano asfalto selvagem de um romancista que, não sendo embora o maior (nem,
evidentemente, o único) é, sem dúvida, dos maiores de nossa ficção.
Referidos a forma, a técnica e o conteúdo,
resta aludir à visão do mundo expressa pelo romancista.
Não vejo esta visão em "Asfalto
Selvagem". Pelo menos um tipo de visão que sugira uma ordem inteligível,
em termos éticos, dos valores contraditórios de uma sociedade concreta e de um
tempo histórico determinado.
Nelson Rodrigues não oferece, nem sequer
sugere, solução para a problemática do mundo que criou. Sua filosofia é, no
caso, a do sarcasmo neurótico. A disponibilidade da gargalhada que envolve
quase tudo: seres, instituições, ideologias, sentimentos. Numa palavra: a
condição humana.
Se Nelson Rodrigues não fosse brasileiro -
ou, mais especificamente, carioca de adoção embora pernambucano de nascimento -
diria que ele é niilista. O mais bem dotado niilista da ficção brasileira.
Brasileiro, Nelson Rodrigues, leitor de
Dostoiévski e de O`Neil, transforma o niilismo em "gozação". Qualquer
Raskolnikoff dele pode ser patético. Não raras vezes o é. Mas será sempre um
Raskolnikoff sensível ao cotidiano do samba de breque.
Esse sarcasmo - de força às vezes
rabelaisiana - não exclui, felizmente, o amor liricamente puro. Exige-o, de vez
em quando. Assim, o dia da confissão de Leleco a Silene.
Há, porém, a lamentar, em "Asfalto
Selvagem", uma sufocante falta de bondade. Os personagens de Nelson
Rodrigues não beberam daquilo que Shakespeare - num lirismo estelar depois
humilhado por citações de almanaque - chamou de "leite da ternura
humana". Quando são neuroticamente "maus", não chegam a ser
bons.
Essa ausência de bondade - até de uma
bondade intermitente e esquiva - faz do mundo de ficção de Nelson Rodrigues
apenas uma projeção caricatural da diabólica inteligência pessimista (ou
sarcástica) do seu dono. Mas a ficção, quando autêntica, costuma vingar-se das
intenções mais obstinadas do seu autor. (Como todos sabem, Balzac quis
romancear duas "verdades eternas": a religião e a monarquia).
Nelson Rodrigues teve, creio, a intenção de
fazer de "Asfalto Selvagem" uma gargalhada mural da comédia erótica
da pequena burguesia brasileira. Mas "Asfalto Selvagem"dá a cada
leitor a opção que o leitor exige de uma obra de arte: a de interpretar, a seu
modo, o mundo do romancista.
No caso do romance de Nelson Rodrigues:
mundo aparentemente caótico porque linear, mas, na verdade, vivo como o vício,
a frustração e a esperança.
Talvez seja por isso que, incrustando a
esperança no sarcasmo opressivo de "Asfalto Selvagem", eu possa, como
leitor, ordenar, a meu modo, o Brasil parcial, mas autêntico, de Nelson
Rodrigues. E identificar pungência nos descaminhos amorosos de Engraçadinha;
ingenuidade nas pequenas torpezas do juiz Odorico; e um canto ao homem pleno no
crime involuntário de Leleco.
Em síntese: identificar - não propriamente
contra, mas além do sexo - a condição humana. E, nesta, um dos seus demiurgos -
Nelson Rodrigues - em suas grandes qualidades e em seus pequenos defeitos.
Qualidades e defeitos do escritor que, mais do que talento, tem o gênio de
recriar certa selvagem beleza da vida.
Lido e assimilado "Asfalto
Selvagem", o leitor, se for honesto consigo mesmo e com a literatura, dirá
do autor, um pouco à maneira de certos personagens dele: "temos um grande
romancista na praça".