Críticas

Senhora dos Afogados

Matéria de 10/06/1954


Creio que bastaria a linguagem dramática, a precisão do diálogo de Nelson Rodrigues para a imediata atmosfera de intensa poesia que envolve "Senhora dos Afogados". Bastaria o ciclorama do Municipal para completar o horizonte daquelas vidas que se partiam, que se queimavam, ardendo de desespero como o bater contínuo do mar por sobre as rochas. A direção carecia de sobriedade e dispensaria as inflexões melodramáticas e aqueles cenários cheios de veludos, troçais e planejamentos mais próprios dos dramas líricos.

 

Reconhecemos o grande esforço da Sra. Bibi Ferreira, como diretora de "Senhora dos Afogados". Via-se em tudo o carinho com que se propusera apresentar o espetáculo dentro de uma "mise-en-scène" brilhante. Infelizmente o trabalho quase nada rendeu, e pior ainda, sua "mise-em-scène" só concorreu para prejudicar a pureza da tragédia de Nelson Rodrigues, quer pelas marcações adotadas, quer pelos estilos que misturou nas diversas cenas. O coro dos "Vizinhos", por exemplo, ora se exprimia dentro de um estilo expressionista, ora servia-se do simbolismo e mesmo do surrealismo para o jogo das intenções psicanalíticas. O personagem "Misael" era um romântico de ópera. Quando sentava-se num divã verde e ia tomar a laranjada, ou o que valha, servida pela senhora sua esposa, era qualquer coisa a Festim de Baltazar. Outra cena desagradável foi a da colocação do espelho para a visão da morta com seus cotocos de braços. Simplesmente grotesca. Se era rubrica do autor não custaria nada um entendimento com o mesmo para o encontro de melhor solução, sugerindo também a retirada do nome de Drumond daquela família; pelo desenvolvimento do tema pareceu-me tratar-se de uma tragédia sem tempo e sem lugar. O velório poderia também ter sido dispensado, o verso do Nelson Rodrigues tem mais força que qualquer velório. Afinal, me pergunto, que miscelânea era aquela? E quando a confusão se generalizava ouvíamos então o retumbar de um gongo - era Bagdá ou o inexorável corte de um Programa de Calouros, mas não, no entender da diretora era o Mar, o chamado Mar!

 

Santa Rosa foi o autor dos cenários. O famoso cenógrafo das tragédias de Nelson Rodrigues usou e abusou do veludo, dos torçais, do divã oriental. No alto do segundo plano viam-se duas paredes com arcos que lembravam a grandiosidade romana de um Chirico. Mas como as paredes se dispunham em ângulo agudo o espectador que se achava em determinado local da platéia ficava, às vezes, impossibilitado de ver certos movimentos do coro, e depois, toda a grandeza trágica daquele mármore era quebrada pelo realismo de uma mobiliazinha pobre, de estilo, que se achava no primeiro plano. Essa caída no trivial veio em socorro do autor quando, inexplicavelmente, põe o nome de Drumond naquela família? Mesmo assim eram móveis baratos demais para um Drumond de trezentos anos e por cima Ministro! E o que dizer do segundo cenário, com um muro cor de laranja, com tijolinhos bem divididos, lembrando certas ilustrações de um dos nossos semanários? E a estrela pintada numa banquinha significava o nome da "Pensão"? Mas o mau gosto excedeu-se com a descida de um veludo negro, com uma redoma dourada que era qualquer coisa de inquietante, sem falar ainda da demora entre os dois quadros finais ocasionada pela mudança de cenários.

 

Dois únicos intérpretes se destacaram Sônia Oiticica, no papel de "Moema" e Maria Fernanda, como solista, no quadro das prostitutas; Natália Timberg, como "D. Eduarda", representou à maneira de uma famosa trágica da nossa cena e Narto Lanza, um bom ator, foi prejudicado pelo estilo melodramático. A diretora poderia também lhe ter dispensado a queda espetacular no alto da escada. O rapaz caiu bem, na verdade, mas isso é um recurso que não se usa mais além de ser um risco de vida. Magalhães Graça, outro bom ator, apresentou-se com limpidez de voz e de máscara no meio daquela gente com ares de melodrama. Ribeiro Fortes fraquíssimo no papel de "Misael" e Carlos Melo é ainda o mesmo Pelléas de alguns anos, sem nenhum brilho. Mas a peça de Nelson Rodrigues tem tanta força que ainda conseguiu superar toda essa falsa eloqüência.

 



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Sobre

Nelson Falcão Rodrigues nasceu no Recife, em 23 de agosto de 1912, o quinto filho de uma família de catorze. Quando tinha três anos, seu pai, Mário Rodrigues, foi tentar a sorte no Rio de Janeiro, capital da República. O combinado era que tão logo encontrasse trabalho, chamava a família para ir a seu encontro. Maria Esther, sua esposa, não agüentou esperar. Em 1916, empenhou as jóias e mandou um telegrama para o marido, já avisando do embarque naquele mesmo dia. Nelson conta, nas "Memórias" publicadas no "Correio da Manhã", que se não fosse a atitude da mãe, o pai jamais teria permanecido no Rio.