Uma peça com medo de ser infeliz
Matéria de 17/08/1990
Anjo Negro, escrita em 1946 e montada por
Ziembinski, no Rio, em 1948, permaneceria inédita em São Paulo até hoje, se não
fosse a montagem de Vivien Lando, em cartaz até domingo no Auditório Augusta. A
demora de um texto do mais importante dramaturgo brasileiro para chegar a São
Paulo é um inegável sinal da saúde eternamente débil da produção teatral no
Brasil. Mas aponta também para as dificuldades da própria peça, soturna o
bastante para manter a maioria dos produtores a uma cautelosa distância e os
diretores, num certo temor reverencial. O "Anjo Negro" é demasiado
amargo para o paladar comum, em seu mergulho despudorado por territórios
dificilmente confessáveis da alma brasileira.
A concentração de tragédia oferecida pelo
texto atraiu a diretora Vivien Lando, interessada em escapar da monotonia de
uma vida teatral comprometida com a leveza e a graça. Sua montagem revelou por
que esse salto requer do diretor músculos mais treinados do que ela pode
oferecer neste momento de sua carreira.
Vivien é uma diretora principiante, com
apenas três montagens no currículo - encenou, antes de O "Anjo
Negro", uma adaptação de "Dom Casmurro" e " Engraçadinha,
Seus Amores e Seus Pecados". Com uma ambição interessante na escolha de
seu repertório, uma apreciável clareza na condução do espetáculo e um agradável
refinamento visual que é visível em cenas bem compostas e bem iluminadas. Mas
ressente-se ainda de uma certa falta de personalidade, que a faz sucumbir ao
peso do texto.
À falta de uma proposta pessoal mais incisiva
para encenação, Vivien utiliza-se, nesta segunda incursão pela dramaturgia de
Nelson Rodrigues, de um ascetismo vagamente submisso ao tratamento dado por
Antunes Filho ao autor - neste caso, infrutífero. Serve como uma espécie de
película protetora, que permite à montagem mergulhar no pântano de
preconceitos, paixões surdas e incestuosas da peça e emergir, ao fim do
espetáculo, sem respingo ou vestígio de que atravessou. Sem sofrimento.
Contribui para isso, além da direção
hesitante, um incômodo descompasso entre a interpretação de Cláudia Mello, que
faz a personagem principal - a mulher branca que sofre o enclausuramento
imposto pelo ciúme doentio do marido negro -, e a do restante do elenco. Nos
papéis do marido e do único homem que consegue infiltrar-se na prisão da
esposa, João Acaiabe e Renato Modesto dão a seus personagens a indispensável
dose de humanidade, entendida no que ela tem de mais terno ou de mais
aviltante. Os papéis menores, construídos em tom mais ligeiro, servem de
respiradouro à aridez sombria da peça, mas Claudia Mello, adorável em tantas
montagens, como Fulaninha e Dona Coisa e as Margens da Ipiranga, transforma sua
Virgínia numa figura recitatória e alucinada e inca uma cunha de repulsa entre
a atriz e a personagem.