Entrevistas

O que estraga o teatro são os atores e o público

Matéria de 29/01/1980


E suas idéias sobre o amor e a morte, contra o divórcio e o casamento dos viúvos, modernismo, Deus, a guerra, o medo e o mundo.

Quem conhece Nelson Rodrigues sabe do método provocador com que ele costuma desencadear o diálogo. Assume, diante do interlocutor, uma impertinente atitude interpelativa. Numa esquina despreocupada, às três horas da tarde, Nelson Rodrigues saca à queima roupa as perguntas mais surpreendentes, ou mais despropositada. Assim em bruto:

Que é que você acha de Lamartine?

As perguntas não são apenas de ordem literária. Versam sobre tudo e podem saltar de um colega de redação ao Mahatma Gandi, ou de um crime a um caso político nacional. Trata-se de uma nova maiêutica que, freqüentemente, deixa em apuros o interrogado.
No uso desse processo, Nelson é implacável. Eu, porém, decidi um dia inverter os papéis – e passei a interrogá-lo. O resultado aqui está. Vale a pena conhecê-lo, porque é um documento sincero e contundente, bastante revelador do que pensa, hoje, ou diz que pensa, o dramaturgo Nelson Rodrigues.


DEZ ANOS DE TEATRO

É natural que este depoimento comece pelo teatro. Nelson Rodrigues é o autor teatral mais discutido do Brasil. Aparecendo há quase dez anos, seu sucesso foi realmente estrondoso. Falou-se e escreveu-se à beça sobre esse homem que invadiu como um impacto a vida teatral brasileira. Foi venerado e foi negado apaixonadamente desde Vestido de Noiva, cada uma de suas peças constitui um casot. Não apenas fechado nos círculos intelectuais, mas debatido pelo público anônimo, que se viu de repente chamado a tomar partido diante de um autor que vinha revolucionar o teatro nacional.

Que importância dá ele ao público e às suas reações? Ouçam esta frase:

O autor teatral só deve e só pode respeitar o teatro vazio. – Afirma Nelson Rodrigues.
E continua, com o ar de quem capitaliza dez anos de experiência teatral:

A grande tragédia do teatro é depender do público. O dramaturgo, no entanto, só realiza sua obra na medida em que se liberta do público. O romancista e o poeta levam, por isso, grande vantagem sobre o autor teatral. Essa, é a minha convicção inabalável.

Nelson Rodrigues que me conta a emoção de que se sentiu preso no dia em que se encontrou, sozinho, dentro de um teatro vazio. Foi ali, naquela atmosfera religiosa, que envolvia a casa de espetáculos, que teve consciência, em termos violentos dessa necessidade que ele hoje prega com indispensável à realização de um dramaturgo: não ter jamais em vista o público.


UM GÊNERO QUE AINDA NÃO NASCEU

O autor de Vestido de Noiva não é dado ao cultivo do pitoresco não é homem de blague. Assim, o que ele está me dizendo tem um sentido profundamente sério, às vezes patético:

O teatro ainda não nasceu. É um gênero atrasado de algumas centenas de anos asfixiado por mil preconceitos, que castram irremediavelmente o ímpeto criador do dramaturgo.
Compara:

O romancista pode imaginar e escrever tudo que entenda, tudo que seja essencial à sua obra é passível de ser convertido em romance. O mesmo sucede com o poeta. O autor não está preso, amarrado, limitado. Por isso é que o teatro está ainda na pré-história. 
Exemplifica:

Seria o cúmulo do absurdo, seria um escândalo de ousadia pôr em cena, uma tragédia, um personagem defecando, com toda a dignidade. O autor que ousasse tanto, ainda que obedecendo a necessidade genuína de sua criação, seria apedrejado. No romance, porém, isso já não constitui novidade que é perfeitamente aceitável. O teatro não terá se libertado enquanto não vencer esses preconceitos.


O ESCRAVO DO PÚBLICO

O teatro viveu sempre em todos os tempos, escravizado ao público, como seu servo e vassalo. Que é o público, no entanto? – Pergunta Nelson Rodrigues.
E responde:

É o número, é o ajuntamento, é a soma de indivíduos. É, portanto, a anulação do bom espectador, do único possível e desejável, aquele que esteja em solidão. Somente sozinho o homem é capaz de compreender, de receber uma obra com inteligência e sensibilidade. Nunca ouve inteligência coletiva, trezentas pessoas reunidas constituem um bloco monolítico de incompreensão, freqüentemente de estupidez.

O que se pode então esperar do público do teatro?

Incompreensão, absoluto divórcio em relação ao Autor.

– Como é possível, nesse caso, a transmissão da substância artística de uma peça?

É preciso, antes de tudo, eliminar o público. Creio firmemente que os próprios intérpretes, ou mesmo todos os elementos da representação, diretor, cenógrafo, atores, etc., toda essa gente não faz mais que obstruir a obra do dramaturgo e desfigurar-lhe a realidade autêntica.

Você considera a leitura de uma peça como ato perfeito e acabado?

Considero. A vantagem do leitor é exatamente esta, estar só. O autor precisa dessa solidão do leitor, para atingi-lo.


ESPETÁCULO, FRUSTRAÇÃO DA PEÇA.

– Cada espetáculo é uma nova frustração da peça. – Afirma Nelson Rodrigues.
Depois procura demonstrar:

– É tão idiota dizer que o teatro precisa, necessariamente, de ser representado como é imbecil dizer que o poema, para alcançar o leitor, precisa ser visualizado materialmente. O leitor do romance quando lê que está chovendo não exige, para compreensão da cena, que lhe derramem um balde de água pela cabeça abaixo! O teatro dispensa o espectador.
Nelson Rodrigues procura ilustrar bem vivamente o que está dizendo:

– Suponhamos que um ator ponha numa peça todo um exército. O leitor consegue, pela simples sugestão, imaginar o que deseja o dramaturgo. Transposta a peça para o palco, não teríamos um exército, mas um carnaval, um rancho em cena! Nunca o palco há de comportar uma batalha, que cabe no texto com uma simples indicação: BATALHA. Eis porque o espetáculo é sempre, inevitavelmente, uma redução, uma violentação, um empobrecimento. Em última análise, é uma castração.


MURALHA DE BURRICE

Como é possível acabar com os preconceitos que diminuem o teatro?

– Rompendo imediatamente a muralha de burrice que o cerca. Antes de mais nada, é preciso esquecer o amontoado de dogmas falsos, de falsas verdades a que ele está amarrado. As idéias feitas, desde o preconceito injustificável das "3 paredes, conspiram contra o teatro.

– Jouvet declarou certa vez que o teatro está esgotado

– Foi um engano de Jouvet. O teatro ainda não nasceu. Tem, pela frente, milhares de possibilidades. Importa primeiro libertá-lo, desatravancá-lo, dos erros e arbitrariedades que o entulham, para então, apresentado em sua mudez, exercer toda a sugestão de que é capaz, sobre o espectador isto, está claro, admitindo como possível o espectador perfeito...


PODER DE CRETINIZAÇÃO

Provoco Nelson Rodrigues sobre a crítica teatral. Ele não hesita um segundo.

– Se o teatro está na sua pré-história, é pré-histórica, logicamente, a crítica teatral.
Pensa um pouco e acrescenta.

– O teatro, não tenha dúvida, exerce um estranho poder de cretinização, mesmo sobre as melhores inteligências. Isto, em parte, porque todo mundo, fatalmente, se baseia no acúmulo de experiências negativas.


TRIÂNGULO DE CAFTINIZAÇÃO

– Os teóricos do teatro... – ia eu dizendo, quando Nelson me interrompe.

– Os teóricos só têm feito mal ao teatro, a começar pelo malfeitor Aristóteles. Que dizer dos outros que vieram depois?

Refiro-me ao diretor, aos atores. Nelson Rodrigues não recua.

– Formam com o público o triângulo da caftinização do teatro. São os responsáveis pela perda de substâncias a que estão sujeitas as obras teatrais.


TECIDO DE EQUÍVOCOS

Pergunto-lhe se, alguma vez, o público esteve presente a sua criação; se ele se deixou influenciar por essa presença.

– Nunca. – Responde Nelson Rodrigues.
Reflete um pouco e confessa:

– Numa única peça fiz relativa concessão: A mulher sem pecado, que considero, por isso mesmo, uma obra frustrada.

Falo em seguida do êxito de Vestido de Noiva.

– Esse êxito me desgosta profundamente.– Afirma Nelson Rodrigues. Foi um mal entendido do público, um tecido de equívocos.
Num tom quase solene, de absoluta convicção:

– Sou hoje absolutamente indiferente ao sucesso ou ao fracasso de qualquer obra minha. É esta a única conquista de quase dez anos de tarimba teatral.


O ATO DA CRIAÇÃO

– O artista é um louco, como é louco o passarinho, como a estrela é louca, como é louca a flor. É louco, como o louco é amoroso, que vive do seu amor, absorvido egoisticamente no seu amor. O ato criador se basta. É como o homem que realiza o ato sexual, sem pensar em qualquer outra coisa do mundo. O resultado, no entanto, pode ser um filho, a existência de uma outra criatura. Na arte, igualmente, o movimento criador pode implicar em resultados posteriores, mas estes serão sempre alheios ao ato gerador. O artista é indiferente a todo e qualquer resultado que se segue ao ato de criação.


DEFESA DE MAU GOSTO

Falo das acusações que têm sofrido a sua obra. Por exemplo: o de estar carregado de mau gosto:

– Confesso e proclamo que há mau gosto no meu teatro – diz Nelson Rodrigues. Mas me admiro que essa acusação seja levada a sério. Os defeitos são inevitáveis, numa obra de arte. São até mesmo necessários. É possível apontar mau gosto na obra de qualquer grande escritor.

Nelson Rodrigues me fala, com entusiasmo, dos escritores que ele chama torrenciais e que são, a seu ver, os grandes criadores. Depois volta ao mau gosto:

– Veja o exemplo de Dostoievski. Os seus livros estão cheios de passagens de mau gosto. A certa altura, no Crime e Castigo, Raskolnikoff cai de joelhos diante de Sônia, num gesto espetacular e desmedido, declarando que não se ajoelhava apenas diante dela, mas diante de todo o sofrimento humano. Se Dostoievski tivesse a preocupação de evitar o mau gosto, jamais teria produzido um rasgo desse, do mais legítimo estilo novela de rádio. Esse mesmo mau gosto, essa mesma coragem de enfrentá-lo aparecem na obra de qualquer grande escritor. Veja também a obra de Balzac, com passagens capazes de arrepiar os estetas bem procedidos que dela se aproximem com as mesmas limitações. 
E o concluindo o capítulo:

– O bom gosto deve ser uma virtude de grã-finas em férias, ou de cronistas sociais. Nunca, porém, de um artista, pois é aí, no mais evidente mau gosto, que ele vai buscar a seiva indispensável à sua obra.


AMOR E MORTE

– Todo autor é autor de um único tema. – Declara Nelson Rodrigues, quando lhe menciono outro tópico da crítica que habitualmente se faz ao seu teatro.
E continua:

– Só dois valores existem – permanentes – para o homem: O amor e a morte. Em torno desses dois mistérios, gravita a vida humana. É lógico, pois, que aí vá o artista buscar a matéria para sua criação. Falamos da preocupação sexual que a muita gente tem servido como ponto de apoio para denunciar o teatro de Nelson Rodrigues.

– Nenhum limite pode ser imposto ao artista, que é livre – libérrimo – tratando seja o que for – diz ele. O artista é sempre inocente. Nunca poderá ser assim, pornográfico, por mais escabrosas que sejam as suas histórias. A pornografia exclui a arte e implora numa intenção, numa utilidade (como excitante, como fator lúbrico) que está sempre ausente do espírito do artista, obediente apenas a um misterioso e inospitável impulso interior. Esse impulso leva, naturalmente, ao Amor que é também sexo.


VALOR TRÁGICO DO SEXO

Houve quem atribuísse a Nelson Rodrigues a intenção de escândalo, ao escrever uma peça como "Álbum de Família".

– Só posso atribuir um juízo desse à imbecilidade – declara ele.

E explica:

– O que me atraí ao tema do sexo é simplesmente o seu alto valor trágico, e importantíssimo para o teatro. É o sexo que faz de cada criatura um ser marcado. E profundamente infeliz. Toda pessoa que perdeu a inocência, que um dia praticou o ato sexual é, a meu ver, um ser perdido, devorado pela voragem do desejo insaciável.


A SOLUÇÃO

– E não há solução para esse abismo...?

– Há. A única solução para o problema sexual é a castidade. Só a castidade é força, é potência absoluta. Uma das provas da sabedoria da Igreja Católica é a imposição da castidade clerical. A castidade é desejável – como solução – mesmo fora da vida religiosa. 
E eis uma declaração que a voz de Nelson Rodrigues acentua com certeza indubitável:

– O pecado sexual pode não ser mais grave, mas é, pelo menos, o mais trágico pecado do homem.


O QUE É UM MATERIALISTA

– Nelson Rodrigues, que se declara um temperamento religioso (Um homem que não compreende a grandeza de um convento não compreende nada, diz ele), afirma-me depois a sua fé numa lei moral superior, que dá a medida do mal, do pecado.

– Essa lei existe, como existe Deus. Cada um de nós traz dentro de si essa opção: aceitar a imortalidade da alma, ou rejeitá-la. Aquele que prefere a alma mortal é um suicida. Morreu no momento mesmo que optou por esse caminho. Acho incrível e inexplicável que alguém prefira fazer a sua vida depender da contingência mais trivial: de uma lotação, ou de uma escorregadela. O materialismo é, para mim, uma atitude profundamente imbecil. Materialista é aquele que chutou a imortalidade, preferindo ver o homem apenas como um ser desprezível. Por isso mesmo, o materialismo exclui os problemas fundamentais do homem, a sua essência verdadeira e permanente, que dura através dos tempos.

– Como você encara o Marxismo?

– Para rejeitar Marx, basta, a meu ver, a circunstância de ele ter ignorado o problema da morte. O homem de Marx é um homem com uma dimensão a menos, um ser simplificado, amputado. É um homem inexistente.


GUERRA E DOR DE COTOVELO

À primeira pergunta, responde Nelson Rodrigues.

– Minha matéria prima, como dramaturgo, são as coisas permanentes do homem.

 – A guerra é uma coisa permanente.

– Não atribuo à guerra a menor importância teatral. Ela não significa nada. Muito mais trágico do que as duas guerrinhas deste século é a dor de cotovelo. Pelo menos, muito mais especificamente teatral. As guerras passam e a natureza humana fica.

 – Você admite que as descobertas científicas mudem o homem?

– Não, nada transforma.

– Que acha da política?

– Nada mais cretino e mais cretinizante do que a paixão política. É a única paixão sem grandeza, a única que é capaz de imbecilizar o homem.

– Você é invisível aos fatos políticos, nacionais ou internacionais?

– Não me interesso. Só uma zona de minha personalidade se deixa tocar pela política, é a demagógica que existe em todos nós.

– Como vê os movimentos políticos de massa?

– Aumentam apenas a minha necessidade de solidão.

– As reivindicações coletivas...

–...me deixam indiferente. Acho ridículo, por exemplo, esse movimento dos funcionários pró-aumento. Se eu fosse empregado público, jamais participaria de um movimento assim.

– A fome... ?

– Não tem a menor importância dramática, teatral. Não impressiona, nem emociona ninguém. Não vale nada. Falo dessa foram retórica, que não se individualiza e que apenas se presta à literatura de segunda ordem. É desprezível, não tem grandeza.

Você acha que vem a guerra?

– Vem com sua grandeza de papelão.

– As realidades coletivas não o atingem, então?

– A mulatinha que no Encantado toca fogo na roupa tem mais valor dramático e poético do que 500 mil chineses urrando de fome.


O DIVÓRCIO

Vamos falar do assunto que esteja na moda: Divórcio.

– Sou contra – declara Nelson Rodrigues.
E exclama, sumariamente:

– Não se abandona nem uma namorada, quanto mais uma esposa!

Peço-lhe os fundamentos de sua atitude antidivorcista, Nelson explica:

– Só se tem uma verdadeira mulher. O marido não se liberta dessa verdade nem depois que ela morre. Por isso mesmo, acredito que o viúvo que se casa está incidindo no mais grave e no mais pusilânime dos adultérios, que é o adultério contra um morto. A morte é simples e normal ausência: não se trai uma pessoa só porque ela não está presente. Em vez de adotarmos o divórcio, precisamos de leis que prendam mais os cônjuges um ao outro. Uma lei proibindo os viúvos de se casarem, por exemplo... enquanto não houver essa lei, a expressão casamento indissolúvel está sendo burlada.

– Você acha que o problema do divórcio resolve...

– Não resolve nada. Não resolve o problema da fidelidade também, não. Porque a infidelidade não resulta da falta de amor. Na maioria absoluta dos casos, trata-se de uma aventura acidental e desnecessária que a lei do divórcio não vai evitar. A amante tem todos os defeitos da esposa e nenhuma de suas qualidades. O divórcio virá, ao contrário, estimular a infidelidade. Uma esposa infiel, por exemplo, em vez de trair apenas o marido, com o divórcio trairá um segundo, um terceiro e um quarto...

– Os casos de incompatibilidade...

– Geralmente a mulher gosta mais do marido do que do amante. Porque ela também só tem um marido verdadeiro.
Nelson Rodrigues explica ainda porque é antidivorcista:

– Toda vida humana se baseia no sacrifício e na renúncia. Pequenos e grandes sacrifícios. Isso é da contingência da vida, é próprio do destino terreno da criatura. Pode ser desagradável, mais é verdade. O agradável, de resto, não é o ideal de ninguém. Quando somos infelizes no casamento, não podemos, por isso, pedir ao estado que nos reconheça o direito de casar de novo. A mulher é uma só, como é um só pai. Se o nosso pai é defeituoso, não adianta requerer ao estado um segundo. E se acaso o estado reconhece esse tolo direito, o que se sucede é que fingiremos iludir-nos, com uma mulher falsa, com um falso pai...


IDÉIAS DE QUINTA ORDEM

Nelson Rodrigues faz apologia da doença e se refere, com maior desprezo, à mania da saúde, à higiene, à eugenia.

– São idéias fixas – diz ele – que substituem os verdadeiros ideais e imbecilizam o mundo moderno. São idéias de quinta ordem! A prova de que a saúde é cretinizante é a coincidência entre a doença e o gênio, entre a doença e a santidade.

– Qual o santo de sua preferência?

– São Damião, que morreu leproso. Que sorte invejabilíssima!


O MENINO LEPROSO

Por falar em leproso, lembro-me de uma passagem que Nelson Rodrigues me contou e que – disse-me ele – o impressionava mais do que todas as grandes catástrofes sem nome. Uma tarde, quando começava descer a noite, encontrava-se em Ipanema e ia andando sozinho pela calçada, quando percebeu dois garotos a conversar. Nelson, ao passar por eles, ouviu o menorzinho dizendo apenas isto: teu não sou leproso; mamãe me disse que eu não era leproso.

– Isso é que é terrível, é que é dramático. – Comenta Nelson Rodrigues.


SABATINA ATUAL

Seguem-se algumas perguntas e respostas mais rápidas.

– Qual escritor brasileiro de sua preferência?

– Nenhum escritor brasileiro me impressionou.
– E Machado de Assis?

– É quase um grande escritor. Está por isso mesmo, solitário no Brasil.

– De um poeta como Castro Alves, que diz?

– É falso como um artigo de fundo...
– Qual seu poeta preferido do Romantismo?

– Álvares de Azevedo, evidentemente.

O Ateneu" é um...?

– ...romance frustrado.

– O Modernismo criou condições para o seu aparecimento, como autor teatral?

– Não devo nada ao Modernismo. Com ele ou sem ele, minha obra teria sido feia da mesma forma.

– O Modernismo criou condições para receptividade de um teatro de vanguarda?

– Não, nenhuma.

– Qual o autor mais representativo do espírito modernista?

– É o mais sofisticado desse movimento sofisticadíssimo: Mário de Andrade.

– O Modernismo não teve seu teatrólogo?

– Teve: Oswald de Andrade, que é um pobre diabo.

– Que acha do moderno romance brasileiro?

– Não me impressiona Graciliano Ramos. Mas gosto de José Lins do Rego. Admiro o poder de criação de Octávio de Faria, poder que é maior do romance nacional. Lúcio Cardoso, a meu ver, está no rumo certo, mais não realizou ainda sua obra.

– Há qualquer parentesco na maneira de tratar o problema sexual, entre sua obra e a de Octávio de Faria?

– Não, nenhum.

– A crítica, a seu ver, é criação?

– É, sem dúvida, os críticos, porém, é que não são criadores.

– Quem você admira nesse campo?

– Respeito e admiro um homem como Tristão de Athayde. Guardo como um belo e comovente documento de minha vida a carta que dele recebi, contra o meu teatro. Nenhum elogio me tocou e me impressionou mais do que essa negação total.

– Tristão de Athayde atribui ao demônio a inspiração de sua obra. Que diz a isso?

– O grande instrumento do demônio é o artista. O demônio está em todos nós e essa inspiração é absolutamente inevitável, em toda a obra de arte.

– O santo então nunca pode ser um artista?

– Pode. O santo não está acima das contingências do mundo. O santo não é um homem que resolveu todos os problemas. É apenas aquele que a cada dia tem os mesmos problemas a resolver e todo dia consegue passar o demônio para trás.

– Você admite que um crente deixe de acreditar em Deus?

– É um fato profundamente dramático. O homem que deixa acontecer isso consigo devia ir para a praça pública, de sandálias e camisola, e urrar e clamar a morte de Deus e da Religião. É uma tragédia apodrecendo tudo dentro dele.

– Quem você gostaria de elogiar, neste momento, no teatro brasileiro?

– Ziembinski, que deu ao Brasil uma boa contribuição, e Celli.

– E Rugero Jacobi?

– É um analfabeto em vários idiomas, de uma ignorância indiscriminada que faz mal ao teatro, ao cinema, ao rádio e à televisão.

– Que acha da paz?

– Uma palavra repugnante.

– Qual a maior lição que você retirou de sua vida intelectual?

– É a mesma daquele personagem de Ibsen, para quem o homem só é homem quando está só.

– Que acha da morte?

– A maior dignidade da morte é física. Nunca o homem é tão belo como quando está morto. Porque tem então assegurada a eternidade, é na morte que o homem tem o seu rosto verdadeiro. Na vida, usamos máscaras sucessivas e contraditórias. Só a morte revela a nossa verdadeira face.

– O teatro é melhor fora do Brasil?

– O teatro é melhor fora em todo o mundo, com raros momentos felizes de poesia. O teatro é a mais prostituta das artes.

– Que o atrai na morte?

– Tenho a maior atração pela morte física. A morte cínica, solução visual do espetáculo.

– Quais as suas obsessões?

– Amor e morte. A morte é solúvel, porque desemboca na eternidade. O amor é insolúvel. Esta é a grande desgraça humana. Daí a infelicidade carnal da criatura, na qual vejo a mais pura substância dramática, tudo na vida tem solução, menos o problema da carne, para aquele que perdeu a inocência. É este, de fato, o único problema do homem.

– A pusilanimidade é um problema de cada um de nós. Infelizmente, vivemos sob esse signo, principalmente os intelectuais brasileiros. Falamos mal e falamos bem por pusilanimidade, por pusilanimidade enaltecemos. A posição política, em 99% dos casos, resulta da pusilanimidade. Falta-nos bravura para romper com esse circo fatal, terrível.

Nelson Rodrigues multiplica-se em exemplos do que é, na vida brasileira, a pusilanimidade. Sobretudo nos meios intelectuais. Por que, diz ele:

– O sujeito, para conseguir êxito literário neste país, tem que ser uma espécie de cocote. A pusilanimidade é a mola que impele para frente.

Podemos encerrar esta conversa. Encerremo-la então com dois exemplos que me dá Nelson Rodrigues:

– Falamos mal do mundo ocidental por pusilanimidade. Você quer saber de uma coisa? Por pusilanimidade é que ridicularizamos os americanos...



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Nelson Falcão Rodrigues nasceu no Recife, em 23 de agosto de 1912, o quinto filho de uma família de catorze. Quando tinha três anos, seu pai, Mário Rodrigues, foi tentar a sorte no Rio de Janeiro, capital da República. O combinado era que tão logo encontrasse trabalho, chamava a família para ir a seu encontro. Maria Esther, sua esposa, não agüentou esperar. Em 1916, empenhou as jóias e mandou um telegrama para o marido, já avisando do embarque naquele mesmo dia. Nelson conta, nas "Memórias" publicadas no "Correio da Manhã", que se não fosse a atitude da mãe, o pai jamais teria permanecido no Rio.