Boca de Ouro (II): Muito sucesso, pouco cartaz
Matéria de 14/02/1963
Nelson Rodrigues é o grande poeta do drama
urbano. Pouco lhe importa que um homem sufoca dentro de si, consciente ou
inconscientemente, por força da pressão do cotidiano. O que lhe interessa é a
explosão, é a libertação de tudo aquilo que cada um sofre mas não cala. Seus
personagens são anormais não no sentido da elementar perversão de costumes mas
no da exacerbação e intensidade existencial. Ele vê o mundo através do
cotidiano, mas não vê o mundo do cotidiano, no qual o drama pode vir a ser
descoberto na normalidade das relações e das situações. Cada um de seus
personagens vive o destino até o fim e até o fundo, derivando daí situações,
sentimentos e condutas que escapam às leis e à ordem consagradas. Por tudo
isso, e por muito mais que poderia se levantar para uma análise da visão de
mundo do dramaturgo, lamentamos que "Boca de Ouro" tenha sido olhado
através das mesmas lentes com que o diretor enfocaria corretamente a realidade,
mas que são inexpressivas e deficientes para recriar uma super ou uma sub
realidade. Assim, "Boca de Ouro" é um permanente explodir de paixões
e de temperamentos contidos por uma linguagem demasiadamente bem comportada.
Essa linguagem poderá servir para contar uma história, nunca para recriar um
drama. E a história, como já observei, é mantida em sua essência e nos é
transmitida com quase absoluto acerto por Nelson Pereira dos Santos. É filme
destinado a interessar o grande público, sem se servir de recursos que
contrariem a expressão ou aborreçam a sensibilidade. Na parte de interpretação,
"Boca de Ouro" nos proporciona algumas surpresas agradáveis. A
primeira delas nos é dada por Odete Lara, que evolui bastante de suas últimas
interpretações no cinema. Como Guigui, Odete Lara age com descontração; desiste
de ser uma beleza estática para conquistar um rosto expressivo. Essa
descontração serviu para atenuar até mesmo os seus graves defeitos de dicção e
emprestou a sua voz um calor de vida até então inexistente. Jece Valadão é um
Boca de Ouro bastante correto, mas sem atingir, a meu ver, a dimensão mítica e
heróica do personagem. Outra surpresa: Geórgia Quental. Temia que ela não
conseguisse sequer falar, mas a moça não só fala como anda, olha e se movimenta
com uma dose razoável de expressão. Daniel Filho, o Leleco, também melhorou
bastante desde "Os Cafajestes", mas ainda não se libertou de algumas
formas de interpretação que podem comprometer a sua espontaneidade. Um exemplo:
para demonstrar sua ira, Daniel sopra e bufa, caricaturando, não exprimindo
aquele respeitável sentimento humano. Deixo de falar nos outros atores
principais, mas elogio a todos, pois é raro termos, no cinema nacional, um
nível tão correto de interpretação. Disse, a pouco, que "Boca de
Ouro" é um filme destinado a sensibilizar o grande público. E ele cumpriu
esse destino com grande dignidade. É de se estranhar apenas que apesar do
sucesso de bilheteria que obteve durante a primeira semana de exibição, e que
foi maior do que o conseguido com "O Pagador de Promessas", por
exemplo, o "Boca de Ouro" tenha sido retirado do cartaz nos Cines
Metro ao cabo de sete escassos dias. Mas o leitor astuto e atento há de ter
percebido que um filme nacional, por melhor e mais bem sucedido que seja, do
ponto de vista comercial, é retirado dos Cines Metro assim que completa uma
semana, mesmo que ele seja capaz de manter-se por mais uma ou duas. Mas isto já
faz parte dos "mistérios insondáveis que Lisboa astuta devassar não pode e
que só Deus sabe".