Críticas

Beijo no Asfalto

Matéria de 18/11/1961


Com sua mais recente peça, o Sr. Nelson Rodrigues parece ter se firmado no caminho daquilo que, na falta de termo melhor, foi chamado: "realismo suburbano". Já em outras peças ("A Falecida", por ex.), tinham desaparecido as vozes misteriosas, as visões, as senhas, as aparições de mortos etc., que, sob o pretexto da patologia ou sob pretexto nenhum, expressavam um mundo simbólico, arbitrário e exasperado. Agora "Beijo no Asfalto" consolida esta conquista e promete, graças ao seu sucesso, uma fase de peças mais acessíveis ao público.

 

"Beijo no Asfalto" tem uma trama aparentemente realista e simples. Conta a degradação de um gesto de fraternidade humana e a destruição de quem o cometeu. Para isto mobiliza uma aparelhagem policial e jornalística de impressionante sordidez (que de fato existe no Rio de Janeiro), um clima de opinião pública baseado no violento preconceito contra o homossexualismo e (last, but not least) um personagem, o menos bem realizado da peça, que proporciona ao espectador a surpresa final que quase deita a perder três atos muito bem construídos.

 

Desde o primeiro instante, desde o momento em que o repórter inescrupuloso resolve explorar um incidente de rua, o enredo se desenvolve com segurança e credibilidade. O gesto do herói Arandir de beijar um moribundo na boca sofre toda a sorte de interpretações infames, na melhor tradição do drama "cumulativo", cujo arquétipo é "O Inimigo do Povo" de Ibsen e cuja finalidade última é menos o de exaltar o herói que o de atacar a sociedade em que vive.

 

"Beijo no Asfalto", sátira dramática, propõe um herói ingênuo como o Dr. Stockman, porém muito mais indefeso, e desencadeia contra ele forças bem mais hediondas que a plácida sociedade conformista da Noruega de 1880. O Rio de 1961 é diabólico-ou diabólica a visão que o Sr. Nelson Rodrigues tem dele. Os que não são pusilânimes são violentos, os que não são violentos são perversos, maliciosos, gozadores da desgraça alheia. Em personagem nenhum se pode constatar um gesto de bondade, de altruísmo ou de compaixão. Nem mesmo na esposa, amorosa no início, nem mesmo na cunhada, possuída de uma paixão secreta por Arandir. Falham as duas no momento supremo. E falha Arandir também, que não gosta de si mesmo o bastante para reagir agressivamente, como um "homem". Ao contrário: na sua atitude dúbia ele parece optar mais por ser ferido que por ferir, como se ele estivesse ao lado dos que o perseguem (qual um novo Michkin), como se ele achasse, na confusão de sua inconsciência, que a sociedade necessita de um mártir e que seu papel é sacrificar-se.

 

É característico do autor a ironia final: aqueles que acusam Arandir encontram-se mais próximos da homossexualidade que ele - um dos perseguidores confessa-se abertamente homossexual. O grande crime do herói foi o de ser caridoso e humano. O beijo de um homem em outro homem, incompreensível como ato de fraternidade, só pode ser visto como perversão. É a cólera coletiva desencadeada há de apaziguar-se apenas no holocausto definitivo.

 

"Beijo no Asfalto" enfrenta as dificuldades naturais de toda a peça de tese: a imposição, ao real, de um padrão que nasce de uma idéia ou de uma paixão. O tema fundamental da peça é ainda o tema constante e romântico das outras peças de Nelson Rodrigues: pureza contra impureza, inocência contra sordidez.

 

Ao cinzelar o real com o fito de fazê-lo corresponder à idéia que tem dele, Nelson Rodrigues lança mão de seu esplêndido ouvido para diálogo e de sua capacidade de criar tipos com poucos traços. É através deste instrumento sensorial (e não por meio de racional, de documentos, como na escola francesa) que consegue seus melhores efeitos. A polícia, o jornalista, a viúva amedrontada, os colegas de escritório (estes em rápidos esboços) tornam-se críveis pela habilidade com que são pintados e que nos faz esquecer o rumo implacável - mas tendencioso - que imprimem ao enredo.

 

Nelson Rodrigues tem por vezes a audácia do próprio repórter Amado Ribeiro, a quem satiriza, ao nos impor certos efeitos. Como crer na esmagadora brutalidade da polícia, na estúpida e inexplicável passividade de suas vítimas, principalmente quando isto nos arrasta a uma formulação ideológica do mundo, senão pela eloqüência do autor, que atua sobre nossos sentidos a despeito das objeções que levanta a razão?!

 

No mundo de "Beijo no Asfalto" não existem leis, juízes, forças moderadoras, respeito ao direito do próximo, nada, enfim, da organização racional da sociedade. Todos devoram todos e, quem for o mais forte, ou quem tiver maior apetite, é que sobrevive ao fim. Os personagens são, em última análise, figurações de atitudes instintivas, de impulsos e paixões: o lado lógico, consciente da personalidade, existe apenas para servir de comentário irônico de si mesmo ou para ser despedaçado em combates cuja turbulência o deixa transido de terror. Na verdade, Nelson Rodrigues não retrata a polícia, mesmo uma Polícia Corrupta: retrata a violência a quem veste de polícia. Também não retrata o repórter, mesmo o Repórter Venal: retrata a cupidez criminosa, trajada de jornalista. São máscaras, enfim, do Sadismo, da Perversidade, da Ambição, não personagens na acepção realista, que o dramaturgo lança sobre a cena. Há algum parentesco com Ben Jonson-apesar da virulência deste se encontrar controlada pelo humor - e as máscaras de que lança mão o Sr. Nelson Rodrigues são, ao cabo, absolutamente adequadas ao tipo de fábula moral ("Morality Play") que escreve.

 

A não existência de tipos teatrais em nossa dramaturgia, ou melhor, a não existência de tipos teatrais que tenham contato com a vida brasileira de hoje, torna particularmente difícil a tarefa criadora de dramaturgos como Nelson Rodrigues. São autores que não partem de uma observação e de uma investigação do Real, mas que trazem já dentro de si a sua visão, a qual buscam expressar através de símbolos acessíveis e compatíveis com a realidade.

 

Que a luta do Sr. Nelson Rodrigues para encontrar uma linguagem dramática adequada à sua visão pessoal foi das mais árduas atestam-na peças semi-realizadas como "Senhora dos Afogados", "Dorotéia", "Valsa n°6" e outras. ("Vestido de Noiva" é uma exceção nesta primeira fase). Com "O Boca de Ouro" e "Beijo no Asfalto" a síntese começa a se fazer, naquele rumo que "A Falecida" já tinha indicado. O mundo interior, convulso, conflitado, ainda surge por vezes mal-amadurecido; contudo, já se verifica suficiente contacto com um outro mais familiar, mais concreto, para que da conjugação dos dois resulte aquele que é o mais real e o mais significativo para Nelson Rodrigues e seu público: o da obra de arte. "Beijo no Asfalto", como realização e como augúrio, é muito bom.

 



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Sobre

Nelson Falcão Rodrigues nasceu no Recife, em 23 de agosto de 1912, o quinto filho de uma família de catorze. Quando tinha três anos, seu pai, Mário Rodrigues, foi tentar a sorte no Rio de Janeiro, capital da República. O combinado era que tão logo encontrasse trabalho, chamava a família para ir a seu encontro. Maria Esther, sua esposa, não agüentou esperar. Em 1916, empenhou as jóias e mandou um telegrama para o marido, já avisando do embarque naquele mesmo dia. Nelson conta, nas "Memórias" publicadas no "Correio da Manhã", que se não fosse a atitude da mãe, o pai jamais teria permanecido no Rio.