A Última Virgem”, ou uma direção inteligente
Matéria de 19/01/1969
Só entendo como blague de vedetismo, o Sr.
Nelson Rodrigues proclamar, seguidamente, que teme os diretores inteligentes
para suas peças quando deve, quando menos, parte de seu sucesso atual, à
inteligência de um Zbignie Ziembiensky, de quem “Vestido de Noiva” e “Anjo
Negro” receberam perspectivas e dimensões provavelmente (ou possivelmente)
jamais vislumbradas pelo autor.
Agora, seus sete gatinhos fundidos numa
única gata virgem tiveram também, em Jô Soares, uma direção inteligente.
Inteligente, porque contida e contida, porque realista: os ensaios se
desenrolaram a toque de caixa sempre para atender à regulamentação da C.E.T. Jô
Soares abdicou, com toda certeza, de vôos imaginativos e ateve-se a um terra a
terra que, a meu ver, valorizou o texto.
De Nelson Rodrigues, diz Fernando Sabino no
prefácio de “Teatro Quase Completo” (Editora Tempo Brasileiro), que ele Nelson,
“pensa em termos de natureza humana, quando eu”, (ele, Sabino), pensa em termos
de sociedade humana”. Mais adiante, demonstra que não, que Nelson pensa, também
em termos de sociedade, quando diz que “entre as múltiplas dimensões desta
(peça), vou encontrar na dimensão realista – a pobreza que estiola e prostitui
famílias das classes inferiores – a que mais me atrai e mais me interessa.
(...) O desenho é perfeito, (...) desvendando-nos (...) o pecado original do
nosso tipo de civilização: a sociedade dividida em castas (...) Uma sociedade
sem segurança material ou mental, corroída pelo dinheiro e pela ficção com que
as idéias se transmitem entre pessoas desprovidas de dinheiro.”
Se, porém, Nelson Rodrigues tem, nesta
peça, vôo de tragédia grego, apresenta, paralelamente, quedas vulgares não
muito justificáveis (a história dos palavrões na parede do banheiro) além de
estereotipais demasiadamente esquemáticas e convencionalíssimas, em contraste
com o tom de aparente normalidade predominante em tudo, malgrado os extremos
dramáticos do enredo. A composição do personagem Bibelot (Aldo César), por
exemplo, mais parece - em que pese o excelente desempenho do intérprete –
imitação das caricaturas cômicas de Chico Anisio. Quanto ao pederasta latente
(ou contido) que se suspeita sob a pele do Dr. Portela (Fernando Benincasa) é
recurso, a meu ver mais atribuível à direção – recurso perfeitamente
dispensável, se não mesmo condenável. À quoi bom?
Só Freud superou Sócrates, Platão e
Aristóteles na arte de ser bidu, dando o golpe de morte no espírito mágico que
ainda povoa – embora agonizante – a angustiada mente humana. Os gregos
apelavam, “oh, deuses!”, para a fauna olímpica de Zeus e entourage. Entre nós
recorresse aos orixás, oguns, oxalás e iemanjás, “saravá, meu pai!”, com uma
vantagem para os gregos: paralelamente à adoração de um mundo mítico, jamais
cessaram de indagar sobre a origem, natureza e destino das coisas. No mundo de
crendice que ainda envolve e domina as nossas classes mais atrasadas e
depauperadas (e as mentalidades tacanhas de todas as classes), não se pesquisa
nada, inexiste a curiosidade intelectual. Entrega-se à superstição,
fanaticamente, tal qual o Noronha (Jofre Soares) da peça de Nelson Rodrigues,
personagem ao qual o ator consegue dar as características muito bem colocadas
por Edward Bullough (in “A Experiência Viva do Teatro”, de Eric Bentley): “O
elemento excepcional das figuras trágicas – aquilo que as torna tão
profundamente diferentes das personagens que encontramos em nossa experiência
ordinária – é uma constância de direção, um fervor de idealismo, uma persistência
e um ímpeto que estão muito acima da capacidade dos homens comuns”. Noronha é
realmente, um “tomado” irracional. Sua ascendência faz também “tomados” todos
os membros da família, impõe-lhes suas profecias oníricas (ou psicóticas). O
público as aguarda e vê realizadas de maneira surpreendente, tão surpreendente
e trágica como a profecia que se abate sobre Édipo.
Jofre Soares e Raquel Martins (a Gorda) são
expoentes da diretriz sensata com que Jô Soares orientou a seleção dos
intérpretes, baseado na maior sugestão possível de autenticidade. Seguem-se, na
ordem (critério subjetivo do crítico) Arlete (Yolanda Cardoso), Aurora
(Ruthinéia de Morais), Hilda (Dirce Magliaccio), Débora (Clarita de Moura) e
Silene (Ana Maria Magalhães). A autenticidade de tipos não diz respeito,
necessariamente, aos níveis interpretativos, de muito boa homogeneidade geral –
com merecido relevo e Jofre e Raquel e algumas restrições a Benincasa e Germano
Filho. Este último desimcumbe-se da figura do Dr. Bordalo, médico da família.
Ao Dr. Bordalo o Noronha oferece, em holocausto, a filha Silene, quando
descobre que deixara de ser a virgem venerada que todos imaginavam. O médico,
após recusar horrorizado, acaba aceitando a oferta, sôfrego, quando vê que seus
pruridos e considerações (ela lembrava-lhe uma filha da mesma idade) não
impedem de o “bombocado” mudar de destinatário e acabar nas mãos de Saul (Enzo
Carnotti). Essa guinada de 180 graus, seguida do suicídio do médico, só pode
evidenciar nele um desequilibrado mental (ou um cínico arrependido), jamais
sugeridos pela interpretação de Germano Filho – ou pela direção...?
Quanto à virgindade – o valor acalentado e
resguardado, à volta do qual e por causa do qual tudo acontece, penso que
Nelson Rodrigues atinge muito além e vai muito mais fundo do, talvez,
pretendido conscientemente. Vejo nela o símbolo transcendental de qualquer
valor, real ou fictício, cultivado pelo homem, individual ou coletivamente, à
falta de equilíbrio emocional que, aliado à instrução, o liberte da necessidade
angustiada de aprovação social. O esboroamento desse recurso alternativo,
defuga, desencadeia a desintegração da mente – individual ou social. O mais
seguro, mesmo, (à falta de equilíbrio e/ou esclarecimento), é identificar-se a
valores objetivos, de difícil perecimento: uma religião, um partido, um time de
futebol...
Não fosse esse sentido essencial, não se
adivinharia nesta – e em outras peças de Nelson Rodrigues – o “algo mais” de
grandeza intuitiva, que transmitem. Para aceitação, em princípio, do que
avento, basta cotejá-lo com outros autores nacionais, mesmo os mais promovidos
e “badalados”. Ele vem se consolidando, através do teatro e do cinema – teatro
e cinema que diluem ou destroem, em outros, valores muito decantados, mas
existentes só no elarido da (às vezes auto promoção)...