A Viúva do Orvietto Ensemble fresquinha em seu humor
Matéria de 15/07/1963
O elenco entendeu muito bem o espírito de
“Viúva, Porém Honesta” e rende bem mesmo quando os papéis reclamariam
intérpretes mais rodriguianos.
Nelson Rodrigues não está conhecendo o
esquecimento que em geral sofrem os criadores, logo após a morte, para
ressurgirem clássicos, anos depois. A todo momento se tem notícia de remontagem
de um texto seu. Em Niterói, estreou “Boca de Ouro”, e, no Rio, inicia carreira
“Viúva, Porém Honesta”, a mesma “farsa irresponsável” que o Orvietto Ensemble
apresenta no Teatro Itália.
Por que “Viúva”, aparentemente uma quase
brincadeira, que o autor escreveu em 1957, para se vingar da crítica sobretudo
à peça “Perdoa-me Por Me Traíres”? Nelson chegou a omitir “Viúva” da relação de
suas obras, pouco citando-a nos pronunciamentos incontáveis que fez, preferia
esquecê-la, em virtude dos aspectos circunstanciais que a motivaram, quando se
empenhava sempre na busca da essência? À distância de 26 anos, cabe pensar que
a razão menor do texto ficou em segundo plano, assumindo o primeiro o que
define a personalidade real do dramaturgo.
“Viúva”
trata em tom de farsa a grande comédia social do país - o potentado da imprensa
que nomeia ministro por telefone e vende o Brasil, o psicanalista psicanalisado
que guarda uma tara secreta e cobra seu silêncio pelo taxímetro, o médico da
família que diagnostica a acompanhante e não a paciente, a ex-cocote,
contemporânea do Kaiser, de Mata-Hari e da febre amarela, hoje na gestão de
casas que atendem aos mais variados gostos e apta até a fornecer uma viúva de
oito horas, o redator chefe que admite ser cavalgado pelo patrão, desde que sem
testemunhas, e assim por diante. Uma enorme pândega, caricatura feroz que abre
como abcesso nossos males contínuos.
Ivonete, a protagonista, ilustra um dos
paradoxos caros a Nelson: trair um vivo ainda passa, mas um morto, nunca. A
morte sacraliza tudo, os sentimentos, as relações. Por isso Ivonete, num achado
simbólico delicioso, não senta, depois que um papa-fila (ou uma carrocinha de
chica-bom, não se sabe) atropelou o marido Dorothy Dalton. Egresso do Serviço
de Assistência aos Menores, efeminado, o jornal “A Marreta”, numa atitude
demagógica, lhe havia confiado o cargo de “crítico teatral da nova geração”.
O texto conserva um frescor de comicidade
que a direção de Roberto Lage não desperdiça. O público ri continuamente das
réplicas divertidas, alimentadas pelo humor não convencional do dramaturgo. O
médico justifica a menina não querer abrir a boca: “Uma boca aberto é meio
ginecológica”... Através do riso, Nelson desmonta a nossa postiça sisudez.
O espetáculo adota a linha satírica,
sublinhando os gestos largos, os exageros propositais, o desmascaramento das
marcações. Às vezes, teme-se que a obviedade de certos signos sexuais banalize,
pela ênfase pleonástica, sugestões íntimas da peça. Vai tudo à conta da
proximidade entra a “farsa irresponsável” e a revista. O tropicalismo fez
escola, depois de O Rei da Vela, e não há como esconder algumas fixações
brasileiras...
O elenco entendeu muito bem o espírito de
“Viúva” e o exprime abertamente. As oportunidades dos papéis e o rendimento dos
desempenhos são semelhantes. O Dr. J.B., diretor do jornal, reclamaria, por
certo, um intérprete mais rodriguiano, no gênero de Fregolente, mas o bom ator
Mauro de Almeida dá o seu recado. Madame Cri-Cri, a ex-cocote, sugeriria uma
mulher mais velha, mas a jovem e vampiresca Susana Lakatos constrói a
personagem de forma coerente e válida. Monalisa Lins é uma viúva sedutora.
Aiman Hammound (o redator-chefe Pardal), Amaury Alvares (Diabo da Fonseca),
Paulo Ivo (Dr. Lupiscínio) e Irineu Pinheiro (Dr. Lambreta) valorizam suas
aparições. Luiz Guilherme dá relevo à presença de Dorothy Dalton. Pertence ao
clima da peça transformar o Dr. Sanatório Botelho da interpretação
masculinizada de Lurdes Moraes e não destoa fundir as tias Assembléia e Solteironas
na figura única de Amair Campos.
O verde e amarelo das linhas quebradas do
cenário de Cecília Cerroti e Cláudia Johsen, pelo gigantismo dos praticáveis,
se impõem em demasia aos atores, apesar da quase nudez de acessórios, sendo boa
a solução do pedaço da parede convertido em cama. Já nos figurinos elas
conseguem uma estilização sempre eficiente.
A marca de Nelson Rodrigues é um estímulo
permanente para o público prestigiar o espetáculo.