Críticas

Tragédia ou tragicomédia?

Matéria de 02/06/1954


Não aplaudi, nem tampouco vaiei na estréia de "Senhora dos Afogados". Mantive-me numa atitude estática, quase que hierática (pelo mimetismo da plasticidade que a diretora Bibi Ferreira conseguiu com as suas marcações), atitude neutra de quem não participa de julgamentos precipitados. Discordo plenamente dos que se abespinharam com os apupos de uma minoria. Considero uma demonstração de que a nossa platéia já discute teatro com veemência, os conflitos de opiniões se fazem sentir calorosos sob uma atmosfera carregada, que por pouco não desanda em conflito.

 

Notei ao meu lado várias pessoas que vaiavam desabusadamente, mas estavam muito longe da vaia organizada, como pretendeu esclarecer o Sr. Gustavo Doria. Bastante me diverti com o grotesco de um público que jamais fez restrições às peças levadas por Jean Luis Barrault (mais por não compreender o francês de um Molière), jamais regateou aplausos por mero esnobismo, por ser "bem" fazê-lo.

 

Tragédia ou tragicomédia, a peça que a censura custou a deixar passar? A pergunta se impõe. Detive-me mesmo, há alguns dias, numa polêmica com o revolucionário dramaturgo. Para mim, a intenção do Sr. Nelson Rodrigues, com relação ao coro dos vizinhos, não logrou o efeito desejado. Queira ele ou não, os apartes histriônicos dos quatro vizinhos de preto quebram a continuidade dramática do texto, mercê da reação provocada pelo público, pois este não adivinha que os vizinhos não compartilham daquela atmosfera carregada, do negrume, da aspereza, das frustrações que coabitam o teto do Drummond.

 

Ninguém ri ao assistir a uma tragédia grega, mesmo quando o coro, que também possui nenhuma afinidade com a ação da peça, se pronuncia. Prefiro batizar "Senhora dos Afogados" como tragicomédia, porque certos trechos tocam as raias da hilariedade:

 

Noivo - Vamos rezar por ela. Todos aqui sabem rezar?

 

Vizinho - Eu sei.

 

Vizinho - E quem não sabe, finge

 

Vizinho - Ninguém morreu, mas vai.

 

Todos - Quem?

 

Vizinho - D. Eduarda

 

Vizinho - D. Eduarda ou Moema?

 

Vizinho - Tanto faz, contanto que morra alguém.

 

Vizinho - Clarinha não teve caixão

 

Vizinho - Nem lírios acesos.

 

Vizinho - Sírios.

 

Vizinho - Desculpe, sírios.

 

Noivo - Portanto, releve as pernas de minha avó

 

O Sr. Nelson Rodrigues está certo ao ridicularizar os que insinuam a sua obsessão homicida. Todo tragediógrafo tende a cultivar o homicídio em boa dose. Inadmissível, porém, a morte da Avó por inanição. Faltou-lhe a preparação necessária. À simples citação do fato, o espectador não consegue esconder o riso.

 

Quanto às pudicícias de terceiros, aconselho-os a que procurem cientificar-se de peças de renome como "Romeu e Janete", de Jean Anouilh. Em que uma palavra pornográfica é uma constante na boca dos personagens, ou então um "Before the Breakfast", de Eugene O`Neill, em que ao abrir-se o pano público é saudado com um termo grosseiro. Daí não vejo nada demais numa ilha de meretrizes mortas, um "Nirvana" clássica onde elas se redimem de seus pecados.

 

Moema - Tens tanto orgulho dessa ilha, falas tanto nela, nas suas praias e nas suas dálias selvagens. Dizes que as luas maiores as procuram, que as estrelas as refugiam nelas como barcos.

 

Noivo - Se soubesses como essa ilha é linda, como é doce o seu ventre! O mar em torno às vezes verde, azul. As mulheres entram no mar, pisam espumas e quando voltam têm nos pés sandálias de frescor...

 

Não se pode negar a beleza poética de certos trechos da tão combatida peça. Há momentos em que o patético atinge o paroxismo, como na cena em que a Avó grita exasperada:

 

- Tirem esse mar daí depressa! Tirem, antes que seja tarde.

 

Por vezes, o senso da justa medida escapa da Sr. Nelson Rodrigues, passagens plenamente dispensáveis e que chocam em demasia, originando um flagrante contraste com outras líricas por excelência:

 

Moema - Um dia eu me vestirei de branco e será o dia mais feliz de minha vida. Eu cantarei, então; e beijarei minhas próprias mãos.

 

Paulo - Ela deve estar dormindo no fundo do mar, com a cabeça pousada num ninho de algas.

 

D. Eduarda - Leva-me para bem longe, para onde nem o sonho de meu marido me possa alcançar.

 

Misael - Às vezes, eu mesmo me comparo. Eu, velho, encarquilhado, a mão já trêmula e ele quase menino, cheirando a mar.

 

D. Eduarda - Quando ele chega, Misael, eu sinto cheiro de mar nos meus cabelos. E tenho vontade de cheirar meus próprios cabelos.

 

Mas um dos momentos de inconfundível misticismo poético é aquele em que o coro das mulheres do cais se confunde à oração pela alma da Clarinha:

 

Sabiá - Ela bateu com a porta na cara do filho do prefeito

 

Vizinho - A morte entrou nesta casa.

 

Vizinho - Vai haver mais defunto.

 

Outra cena que o autor deveria evitar é a de leitura de legendas das coroas. Os nomes de Olegarinha, Nonô, Candinha, não soam bem num texto essencialmente trágico.

 

Apesar desses pequeninos senões, merece respeito a tarefa a que se propôs o sr. Nelson Rodrigues. Para muitos, quis ele armazenar em três atos e seis quadros o que poderíamos chamar de síntese da tragédia universal, com todos os truques de teatro moderno. Atribuem-lhe influências diversas, começando por Sófocles e Eurípedes até mesmo Anoiulh e O’Neill. Mas o que ainda não foi dito é que "Senhora dos Afogados" mantém uma grande semelhança com o romance de Dostoievski, "Crime e Castigo". Raskolnikof e Misael se utilizaram de um mesmo machado como arma assassina e o castigo de Moema não falta, para justificar a fonte de inspiração do Sr. Nelson Rodrigues. Naturalmente, na "Senhora dos Afogados" não há apenas o problema de um crime e conseqüente arrependimento, mas uma onde de crimes, mesclada com suicídios, adultério, insânia e incesto.

 

 



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Sobre

Nelson Falcão Rodrigues nasceu no Recife, em 23 de agosto de 1912, o quinto filho de uma família de catorze. Quando tinha três anos, seu pai, Mário Rodrigues, foi tentar a sorte no Rio de Janeiro, capital da República. O combinado era que tão logo encontrasse trabalho, chamava a família para ir a seu encontro. Maria Esther, sua esposa, não agüentou esperar. Em 1916, empenhou as jóias e mandou um telegrama para o marido, já avisando do embarque naquele mesmo dia. Nelson conta, nas "Memórias" publicadas no "Correio da Manhã", que se não fosse a atitude da mãe, o pai jamais teria permanecido no Rio.