Entrevistas

Entrevista com Luiz Arthur Nunes

Matéria de 12/12/2000


Luiz Arthur Nunes é diretor consagrado de teatro, com doutorado pela Universidade de Nova York sobre Nelson Rodrigues.


Como você conheceu a obra de Nelson Rodrigues?

Não cheguei a conhecer Nelson pessoalmente, mas tive o privilégio de assistir algumas das montagens originais. Ainda em Porto Alegre, quando eu era bem garoto, assisti o "Beijo no Asfalto", no Teatro dos Sete, com Fernanda Montenegro, Ítalo Rossi, Sérgio Britto. Uma outra montagem que assisti lá foi "Boca de Ouro", direção do José Renato, com Milton Moraes no papel principal, a Vanda Lacerda, como Dona Gigi.

Outra montagem que foi muito importante para mim que foi a primeira de "Toda a Nudez Será Castigada", que eu vi aqui no Rio, em 1967, com a Cleide Yaconis, a primeira Geni, com direção de Ziembinski. E, claro, os primeiros filmes, da década de 60, "A Falecida", de Leon Rizman, "Boca de Ouro", de Nelson Pereira dos Santos, "Engraçadinha", do J.B. Tamko, "Bonitinha, mas Ordinária".

Desde o começo, me apaixonei pela obra dramática de Nelson, mas foi só muito mais tarde que eu vim a estudar mais profundamente toda a obra. Foi quando escolhi Nelson como tema da minha tese de doutorado no exterior.

Sobre o que era a tese?

Chama-se "O Conflito entre o Real e o Ideal, um estudo dos elementos do naturalismo e do melodrama no teatro de Nelson Rodrigues". Faço uma análise das 17 peças procurando ver como ele aproveitou as heranças do melodrama e do naturalismo, reviu todo esse arsenal de procedimentos, técnicas, efeitos, truques e, depois, como tudo isso foi lido e interpretado. Antes de ter escrito a tese, nunca tinha montado Nelson. Trabalhei exclusivamente em cima dos textos. Foi depois dessa pesquisa que eu vim a montar meus espetáculos em cima dos textos do Nelson.

 Como foi a opção de retornar a "A Mulher Sem Pecado", que foi a primeira peça dele?

Foi um pedido do José de Abreu, ator e produtor do espetáculo, que é meu amigo. Fomos parceiros de trabalho por muito tempo, e ele queria montar um texto, um bom texto, que tivesse um bom personagem para ele protagonizar, e eu mandei para ele algumas sugestões de textos, Entre eles, estava "A Mulher Sem Pecado", ele se apaixonou imediatamente pelo texto e pelo personagem Olegário.

Que outras montagens de Nelson  você fez?

Meu primeiro espetáculo com texto de Nelson foi uma adaptação de "A Vida Como Ela É", em 1991, que teve uma repercussão muito grande.

Meu interesse na época, depois de tanta pesquisa, era teatralizar os textos narrativos, os contos, os romances. Sem fazer uma transposição de gênero, conservando a fala do narrador.

A maneira como ele conta aquelas histórias, os comentários que ele faz, muitas vezes com uma ironia tão grande, um sarcasmo. Na época, eu queria apostar no Nelson Narrador, que fala, que conta diretamente para nós a história. É um Nelson fascinante.

Considerando que a obra literária dele não foi feita para o teatro, quais foram as dificuldades que você encontrou e quais as opções estéticas na hora da montagem?

Minha opção foi não ser realista. Prefiro um teatro distante do naturalismo, um teatro mais sugestivo. Nada contra as peças convencionais, os grandes textos do realismo, Tchécov inclusive é um dos meus autores favoritos. Mas em termos de linguagem teatral, me fascina muito essa possibilidade de criar um mundo imaginário, assumindo que o teatro é um mundo imaginário, sem se preocupar com aquela coisa da ilusão, da cópia da realidade. "Vestido de Noiva", por exemplo, possui isso, esse "expressionismo rodrigueano", que existe também na "A Mulher Sem Pecado, que é a primeira peça dele.

Que tipo de opções estéticas você acha indispensáveis em Nelson Rodrigues? Na sua opinião, o que não pode faltar num montagem?

Olha, é difícil responder isso. Um novo olhar de um diretor sempre pode descobrir novas riquezas e desprezar algumas que a gente está acostumado a ver. Por exemplo, o Antunes Filho, quando montou Nelson na década de 80, rejeitava completamente o lado crônica de costumes carioca, os tipos característicos. Ele achava que isso criava uma espécie poeira em cima de Nelson e que impedia uma leitura mais aprofundada. Disfarçava o significado mais denso, mítico e poético de sua obra. Então, ele criou esse Nelson nunca visto, essa encenação extremamente poética, que desprezava a crônica de costumes. Gostei da proposta, mas na minha opinião, a crônica é um elemento indissociável da obra de Nelson, é uma das peles, é uma das faces da moeda.

Além do trágico e da crônica de costumes, que outras "peles", você observa na obra de Nelson?

O humor, a ironia. Até algum tempo atrás não se percebia muito o humor de Nelson. Na minha montagem de "A Mulher Sem Pecado", por exemplo, o público ri muito. Mas fiquei sabendo que em outras montagens da mesma peça, o texto era encarado de forma extremamente sombria, grave, pesada. Atualmente, é impossível dizer alguma daquelas frases sem ironia. "É imoral olhar o próprio corpo nu, só as cegas deveriam ficar nuas". Ou então "Toda mulher bonita é amante de si mesma". O humor fundamental.

Como o humor pode conviver com o melodrama, também presente na obra de Nelson, sem pender demais para um lado ou para o outro?

O melodrama é outro elemento fundamental. Nelson gostava dos atores canastrões. E o melodrama é a estética do excesso, do exagero. São personagens à beira de um ataque de nervos. Nelson trabalha muito com o recurso técnico da pista falsa, de levar o espectador a acreditar em uma coisa e depois surpreender com uma outra revelação. Esse é no caso do Aprígio de "Beijo no Asfalto". Nelson leva o espectador a achar que o Aprígio tem um amor incestuoso pela filha, quando na verdade ele ama o genro.

Quais as diferenças entre o público que assistia Nelson Rodrigues antes e hoje?

Inegavelmente, houve uma evolução. Vivemos tempos muito mais liberais. Toda aquela reação conservadora, moralista, diante das obras do Nelson, que fazia com que muitas fossem censuradas, não existe mais. Para o público de hoje, Nelson já se tornou mais palatável. Ainda mais com essa descoberta do elemento do humor. Eu acho que o que acontece é um reconhecimento do dialeto rodrigueano.

E como é esse dialeto?

 

É uma espécie de sotaque rodrigueano, a maneira que ele escreve, o tipo de humor, as frases utilizadas, o tipo de construção, de imagens, tudo isso já foi incorporado ao imaginário do público contemporâneo.

Não acho que essa maior aceitação tenha ocorrido a partir de um amadurecimento do público. Pelo contrário, houve até um emburrecimento, as pessoas vão menos ao teatro. Mesmo assim, esse público reconhece Nelson, que é o autor dramático sobre o qual mais se escreveu. As montagens teatrais se sucedem, obras são adaptadas para o cinema, para a TV.

Nelson dizia que ele gostava de diretores burros. Como você encara essa afirmação dele?

Nelson gostava de fazer piada, era um humorista. Na verdade, ele estava protestando contra um tipo de direção que pudesse violentar a sua obra. Boa parte das sugestões de encenação que ele fazia nas rubricas são as mais acertadas. Ele visualizava cenários, gestual, interpretação, marcação. Existia um diretor teatral por trás do dramaturgo.

Nelson foi um reformador do teatro. Mas antes de tudo era um jornalista. Como alguém de fora do meio artístico pôde realizar essa revolução?

 

Nelson tinha genialidade artística. A imaginação prodigiosa de um ficcionista. O próprio jornalismo que ele fazia era de opinião, de ficção, muito pessoal. Não era um jornalismo objetivo, de relato, de reportagem. O Nelson era um homem da imaginação, da ficção, que começou a escrever teatro meio que por acaso, segundo ele conta. E, de repente, elegeu o teatro como sua forma privilegiada de expressão. Paralelamente, ele ia produzindo escritos "jornalísticos", crônicas e os contos de "A Vida Como Ela É", ou romances de folhetim como "A Engraçadinha", "O Consultório de Mirna", "Susana Flag", "Asfalto Selvagem", "O Casamento".

Ele inclusive considerava esses escritos menos importantes em relação ao seu teatro....

Para ele, os textos publicados nos jornais estavam muito associados ao trabalho para sobrevivência. Mas essa obra "menor" não é tão pequena assim do ponto de vista estético. "O Casamento" é um grande romance e o próprio "Asfalto Selvagem", que foi escrito como folhetim, e portanto com um descompromisso maior, é primoroso.

Nelson disse que nunca leu nada de teatro e que a única influência que ele poderia ter tido é de Dostoiévski. Você acredita que ele nunca tenha lido nada de teatro realmente?

Não acredito muito não. Acho que ele disse isso porque gostava de fazer pose de anti-intelectual. Isso valorizava sua a genialidade. Imagina: "eu nunca li nada de teatro, mas escrevi uma obra prima como Vestido de Noiva..."

Você acha que existe alguma forma em que Nelson ainda não foi abordado no teatro? 

Acho que as peças míticas ainda não encontraram uma expressão cênica nas montagens. Pelo menos, as que eu tenho assistido.

São extremamente difíceis. "Álbum de Família" é a única peça que eu teria medo de realizar. Eu não saberia por onde começar. Não recusaria a oportunidade, se ela surgisse, mas é uma tarefa muito difícil acertar o tom dessas peças que são cheias de fantasia, excesso, violência, sangue e excremento...

Alguns diretores amadores fizeram montagens inspiradas em Nelson Rodrigues, em que peças e personagens eram misturados. O que você acha disso?

Ana Kfouri fez isso. Mas eu acho que é muito difícil porque você tem que construir uma dramaturgia a partir de uma dramaturgia que já existe e é genial. Mas não acho absolutamente impossível. O próprio Antunes fez isso. Em "O Eterno Retorno" e depois em "Nelson Dois Rodrigues", ele juntava três ou quatro peças, numa espécie de uma edição. O que eu tenho feito é construir em cima dos textos em prosa de Nelson. Isso é menos complicado, porque eles não foram escritos originalmente 



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Sobre

Nelson Falcão Rodrigues nasceu no Recife, em 23 de agosto de 1912, o quinto filho de uma família de catorze. Quando tinha três anos, seu pai, Mário Rodrigues, foi tentar a sorte no Rio de Janeiro, capital da República. O combinado era que tão logo encontrasse trabalho, chamava a família para ir a seu encontro. Maria Esther, sua esposa, não agüentou esperar. Em 1916, empenhou as jóias e mandou um telegrama para o marido, já avisando do embarque naquele mesmo dia. Nelson conta, nas "Memórias" publicadas no "Correio da Manhã", que se não fosse a atitude da mãe, o pai jamais teria permanecido no Rio.