Entrevistas

Entrevista com Sura Berditchevsky


O que você conheceu primeiro: o dramaturgo ou sua obra?

Eu conheci primeiro a obra. Foi uma coisa muito interessante. Eu estava começando a estudar no Tablado, na época. Eu e Louise Cardoso, que éramos da mesma turma e éramos muito amigas estávamos de férias naquele ano e fomos viajar para o interior de Minas com a mãe da Louise e a família dela e levamos a obra completa de Nelson Rodrigues. Eu ainda fazia Comunicação na Fluminense, fazia teatro, e a Louise fazia Letras. Depois acabamos optando mesmo pela carreira de atriz. Então, foi nessas férias no interior do Sul de Minas em que nós devoramos toda a obra de Nelson Rodrigues. A gente sabia alguma coisa. Mas as peças eu nunca tinha lido até então, eu era muito nova mesmo. Havia todo um mito em torno de Nelson Rodrigues, porque eu me lembro que tinham livros que haviam sido proibidos em escolas secundárias. Então a gente via, em televisão, em programas horrorosos, apelativos, polêmicas de mães de alunos.


Que imagens você fazia do Nelson antes de conhecê-lo?

A figura dele já era bastante conhecida. Eu tinha na minha casa acesso a essas informações. Havia, na época, essa polêmica em torno da obra, mas nada era proibido para gente. Também tinha o lado político dele, que era considerado extremamente reacionário, e a minha família toda era mais de esquerda. Havia uma dualidade da obra dele, o excelente dramaturgo, com as idéias que ele passava publicamente. Mas ele era um personagem muito admirado dentro da minha família.


Como foi o primeiro contato com Nelson Rodrigues?

Entre uma novela e outra, eu fui fazer o primeiro filme de Nelson Rodrigues, “Os Sete Gatinhos” , que foi quando eu o conheci pessoalmente, eu não me lembro muito bem se foi em 78 ou 79. Nós filmávamos na Cinédia. E foi maravilhoso, apesar de que eu não gosto do filme. Foi um contato super interessante. Ele ia a todas as filmagens. Dois anos antes eu já tinha tido contato com o filho dele, o Nelsinho, que estava preso. Nessa época, eu e várias atrizes profissionais conhecidas fizemos uma grande manifestação. Existe até uma foto bastante conhecida em que estamos eu, Sônia Braga, Denise Bandeira, Louise e Lucélia Santos com todos os exilados, e entre eles estava o Nelsinho. Então, quando eu conheci o Nelson, já havia essa ligação com a família, com a vida política.


Como ele agia nas filmagens?

Ele era participativo, queria acompanhar tudo, mas também ficava muito cansado, porque era muito cansativo. 


O que você acha da adaptação da obra de Nelson para o cinema?

Acho que teve um momento no cinema brasileiro, no final da década de 70 e década de 80, muito oportunista com relação a obra do Nelson. Cineastas que se apropriaram, naquele momento em que ele estava mais velho, antes de morrer, e foram como urubus na obra dele, obviamente com o consentimento da família. Não chega a ser pornochanchada, mas é quase. Existem filmes muito grotescos, muito diferentes da experiência anterior dos cineastas que tinham vindo do Cinema Novo. O Jabour, por exemplo. Existem filmes antológicos da obra dele. Essa tendência oportunista começou, de uma certa maneira, com um dos filmes que eu fiz, que foi “Sete Gatinhos”. Mas eu acho que de toda essa safra dessa época, o “Sete Gatinhos” é o menos oportunista. 


Como surgiu o convite para você atuar em “A Serpente”?

Quando eu fiz esse primeiro filme, eu tive um contato pessoal com Nelson e o cenógrafo do filme, que era o Marcos Flaxman, tinha um projeto junto com ele de fazer “A Serpente”, e aí eu fui convidada.


Como foi a participação de Nelson na montagem de “A Serpente”?

Em “A Serpente” ele ia realmente todos os dias não só aos ensaios, como também na temporada. Era muito comum você chegar no antigo teatro BNH, que hoje é Teatro Nelson Rodrigues, lá estava sempre a Elza (esposa dele) na bilheteria e o Nelson Rodrigues na coxia. Como ele não enxergava de longe, ele sentava perto e falava pra mim (imitando): “Minha querida Duze”, ele me chamava de Duze, que era uma grande atriz. Isso para mim era uma grande consideração. “Minha querida, veja se eles estão realizando mesmo o ato supremo”.  Ele tinha uma grande preocupação com o momento da peça que ele descreve como o ato supremo sexual, que na verdade é um “69”. Ele queria que eu dissesse pra ele se os atores estavam realmente consumando o ato supremo. Eu ficava tentando desviar de todos os lados. Mas ele não falava isso de forma desbocada, não tinha nenhuma malícia. Ele queria saber se estavam fiel realmente ao texto.


E como foi o processo da última peça de Nelson Rodrigues?

Nós fizemos, durante o processo, muitas entrevistas gravadas. Volta e meia iam muitas pessoas interessantes assistirem o ensaio e participar do processo de criação. Nós fazíamos uma mesa redonda. Depois esse material serviu para divulgação. Nós dávamos também entrevistas coletivas.


Como foi a reação do público na estréia de “A Serpente”?

A temporada inteira foi muito legal. Foi um susto na estréia, porque a gente não imaginava que pudessem ter gargalhadas. Hoje quando é montado Nelson Rodrigues espera-se esse tipo de coisa, porque está mais coloquial, está mais próximo da nossa vivência. Mas naquela época. Eu acho que isso faz parte da imprevisibilidade de Nelson.


O que mais te atraiu em “A Serpente”?

“A Serpente” é muito diferente das outras peças. Você vai encontrar na boca das personagens exatamente as mesmas falas de outros personagens do resto no obra dele. Isso é uma peculiaridade do Nelson. Os personagens se repetem. Vestidos com outras roupas, com outros nomes, em outro contexto, mas eles estão, de uma certa maneira, falando o mesmo drama. “A Serpente” é um texto super conciso, muito enxuto, é uma peça pequena, inclusive. Ela é quase uma partitura.


Teve algum significado especial o fato de “A Serpente” ter sido a última peça de Nelson?

Muito. Eu reverencio o privilégio da gente estar com pessoas que estão buscando alguma coisa maior e melhor no mundo, sem ser essa coisa imediatista de querer se dar bem. Eu tive uma grande sorte de estar sendo tão próxima da Maria Clara Machado e do Nelson Rodrigues. Para mim eles são dois mestres. Que bom que eu pude ter esse caminho na minha vida! 


Você participou de outras montagens de Nelson...

Minha primeira direção profissional foi a “Valsa no 6”, junto com a Cláudia Gimenez. Isso foi em 1981. Foi um trabalho super importante, bem cult, mas que marcou um momento, uma década no teatro. Meu trabalho foi uma referência para outros trabalhos e atores mais novos.  Nesse momento, o Luiz Antônio Martins Correa, diretor maravilhoso que trabalhou muito na minha casa, escreveu a “Ópera do Malandro”, onde a Claudinha trabalhava. Um dia a Cláudia Gimenez  foi me chamar para dirigir a “Valsa no 6” por indicação do Luiz Antônio. Ele achava que tinha tudo a ver ela ser dirigida por uma mulher e sugeriu que ela me convidasse para dirigir. Nessa época eu já dirigia coisas no Tablado, eu já era professora, mas tinha medo. Eu achava a Cláudia muito nova, mas o personagem que ela fazia na “Ópera do Malandro” já estava fazendo sucesso. Porém, a personagem de “Valsa no 6” não tinha nada a ver com o biotipo da Cláudia. Todas as atrizes que faziam “Valsa no 6” tinham o biotipo de ninfeta, frágil. Então eu fui até Nelson Rodrigues, apresentei a Claudinha e perguntei o que ele achava. Ele achou muito legal e me deu o passe livre. Trabalhamos durante sete meses. Havia até um psicanalista Junguiano que acompanhava o nosso trabalho. Nossa estréia foi no ano da estréia do Circo Voador, no Rio, e nós montando Nelson Rodrigues no teatro do Iban, no horário alternativo de meia-noite. Era completamente cult ! Nós tivemos uma crítica ótima de uma mulher chamada Cátia Murici, que teve uma visão feminina muito sensível em cima da obra. Eu também fiz a Dorotéia, mais recentemente. Foi o último trabalho que o Carlos Augusto Strasser (diretor) fez. Ele adorava Nelson Rodrigues. Foi uma experiência maravilhosa.


Quais foram suas principais dificuldades ao montar Nelson?

É muito difícil montar Nelson Rodrigues. A pessoa tem que ter uma leitura subjetiva. Não é o que está ali, é o que está por trás daquilo. Por isso ele tem tantas rubricas. As rubricas do Nelson são o texto dele. Às vezes, as rubricas do Nelson são mais interessantes do que a própria fala do ator. Não é todo mundo que sabe montar Nelson Rodrigues, que é feliz montando Nelson. Exige um trabalho muito profundo de investigação em várias áreas. Por isso é tão intenso e maravilhoso. A pessoa tem que ter vivência ou, pelo menos, um preparo profissional muito consistente. Quanto mais experiência, cultura, tem o ator, mais próximo ele estará de interpretar um personagem de Nelson.


Para você, qual é a diferença entre a reação do público, na época em que você montou Nelson, e hoje?

Não vejo muita diferença. Hoje, já tem, novamente, uma sofisticação e um respeito com a obra do Nelson. Isso foi uma característica típica da década de 80, porque vínhamos de um  período de aroxo de censura. O cinema de pornochanchada era o único possível de ser feito. Houve um momento de querer escrachar, popularizar. Foi parte de um momento histórico. Hoje existe de novo uma qualidade tanto no cinema quanto no teatro.  


Mas você acha que a obra de Nelson ainda choca?

Choca, mas não como na década de 50. Hoje ela está mais próxima da nossa vida, porque nossa vida está mais violenta. Tudo aquilo que era proibido, hoje, é permissivo. A gente se espelha, de uma certa maneira. Isso é genial, porque é mostra a capacidade que ele tinha de falar antes do seu tempo. O que você vê em cena é simplesmente um extrato do que é visto na vida real. O Nelson teve uma vivência jornalista policial que foi um material muito vivo para ele. Não só por isso. Ele teve a sensibilidade de captar isso de uma forma brilhante. É um dos melhores dramaturgos mesmo.


O cinema revela mais da obra de Nelson do que o teatro?

Depende do cineasta e do diretor. Ele é um dramaturgo, um autor de teatro. Ele nunca foi um roteirista de cinema. Mas as peças dele têm dramas maravilhosos e têm imagens.  Quando você lê qualquer texto do Nelson, você visualiza a cena. Por isso ele é tão adaptado para televisão e para o cinema.


Você dá aula de teatro para adolescentes. Você usa os textos de Nelson em aula?

Não é um texto bom para ser trabalhado com adolescentes, porque eles têm pouca vivência, porque eles não têm cultura e não vão compreender. Depois de algum tempo sim. Lógico, que um ator com mais de três anos de aula tem que entrar em contato com a obra de Nelson. Eu indico sempre, mas não costumo montar com meus alunos.


Você gostaria de montar Nelson?

Eu gostaria de remontar “Valsa no 6”. Como atriz, eu adoraria montar Nelson Rodrigues. Eu acho que tenho o tipo para textos de Nelson Rodrigues e do García Lorca, que tem uma camada de dramaticidade e uma afinidade com a obra do Nelson. Como atriz, qualquer peça dele eu faria. Eu me sinto com afinidade.


Numa nova montagem de “Valsa no 6”, você mudaria alguma coisa?

Volta e meia, eu e a Claudinha falamos que dá vontade da gente remontar. Ela tem vontade como atriz e eu tenho vontade como diretora. Mas eu não me imagino dirigindo um outro texto dele. Eu me imagino interpretando.


Você conviveu com Nelson no final da vida dele. Como foi?

Eu vivi quase quatro anos, intensamente, ao lado de Nelson Rodrigues. Minha vivência com ele começou em 1978, quando começaram as filmagens de “Sete Gatinhos”. Naquela época eu estava vivendo uma grande paixão na minha vida, que era com o Marcos Flaxman, diretor da peça, e a minha vida estava completamente rodrigueana.  E o Nelson percebia isso e falava. Foi um privilégio mesmo.



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Sobre

Nelson Falcão Rodrigues nasceu no Recife, em 23 de agosto de 1912, o quinto filho de uma família de catorze. Quando tinha três anos, seu pai, Mário Rodrigues, foi tentar a sorte no Rio de Janeiro, capital da República. O combinado era que tão logo encontrasse trabalho, chamava a família para ir a seu encontro. Maria Esther, sua esposa, não agüentou esperar. Em 1916, empenhou as jóias e mandou um telegrama para o marido, já avisando do embarque naquele mesmo dia. Nelson conta, nas "Memórias" publicadas no "Correio da Manhã", que se não fosse a atitude da mãe, o pai jamais teria permanecido no Rio.