Críticas

Uma confissão de amor ao ser humano. Pró Nelson Rodrigues

Matéria de 12/03/1983


"Bonitinha mas Ordinária", a peça de Nelson Rodrigues, ganhou sua segunda versão cinematográfica. Aqui, a peça e o filme são analisadas pelo psicanalista Hélio Pellegrino.

 

"Bonitinha, mas Ordinária ou Otto Lara Resende", de Nelson Rodrigues, representa uma meditação dramática sobre o mistério da bondade humana. A história de Edgar -personagem central da peça, agora transposta para o cinema por Braz Chediak - é a história de sua decida aos infernos e de sua lenta e dolorosa ressurreição. Ele se suja no pântano da vida, ele cede e concede, ele se arrasta na lama.

 

Mas há nele qualquer coisa de irredutível que não se quebra. Há nele uma semente de luz que por fim explode, como um sol que nasce. E neste momento - no momento em que se curva diante do mistério do amor, e aceita a sua essencial pobreza - Edgar encarna o ser humano na sua incurável vocação de integridade e bondade.

 

O problema central do filme lembra, por sua estrutura metafísica, o famoso grito de Dostoiévski: "Se Deus não existe, tudo é permitido". O conceito de Deus, aqui, representa a intuição última e radical que ao homem é dado ter sobre a dignidade e a sacralidade do ser. O homem tem a possibilidade elementar, primitiva, de abrir-se não apenas com a razão mas com o coração, com as vísceras, à verdade e à graça do ser. Esta possibilidade constitutiva, do ser da existência humana, permite um embasamento pré-reflexivo da moral, encravada na carne do homem, e torna possível a existência dos valores.

 

Mas, pelo fato mesmo de ser o homem uma possibilidade de abrir-se à verdade do ser e, portanto, de amá-lo em sua essência, também é inerente ao homem a possibilidade do erro, de desagarramento e do extravio. O homem pode errar, pode perder-se, perdendo a possibilidade de albergar a verdade do ser e a sua própria verdade. Desta perspectiva decorre uma insegurança e um risco inerentes a toda experiência humana. O homem é imperfeito, e finito. Sua abertura a verdade e o cerne mesmo de sua existência estão crucificados no horizonte da temporalidade e nele transcorrem. O homem está crucificado no tempo, na sua finitude, e isto significa que o homem carrega consigo a sua morte, a impossibilidade radical de todas as suas possibilidades. A abertura do homem à verdade do ser e à sua própria verdade lança raízes nesse chão amargo, e este é o centro de sua agonia existencial. O ser humano, diante de sua finitude, que representa a sua imperfeição radical, o estigma de sua queda, tem duas possibilidades: ou ele aceita, e nela se crucifica, assumindo-a, e nesta medida tem a possibilidade de transcendê-la - morte, tua vitória onde está? - ou se rebela, se encharca de ressentimento e de orgulho e, a partir daí, nega Deus e a sacralidade do ser e tudo lhe passa a ser permitido. A essência da maldade humana reside nesta revolta e neste orgulho ressentimento. Se não aceito a minha condição humana, se não aceito e amo minha morte, não posso ser bom. Ser bom implica um aceitar-me crucificado no horizonte de minha temporalidade, para que eu possa amar a mim e ao meu próximo na nossa comum e radical imperfeição. O homem bom é aquele que sabe que o homem se extravia, se perde e morre, sem com isto perder a fé na condição humana e na sua incurável vocação para a ressurreição e a verdade.

 

Essas considerações de natureza filosófica são indispensáveis à compreensão da história de Nelson Rodrigues. Qual é o problema existencial do trabalho pelo autor de "Otto Lara Resende"? O personagem central, Edgar, parte da meditação agônica de uma frase - atribuída na peça e no filme ao escritor Otto Lara Resende - segundo a qual "o mineiro só é solidário no câncer". Atrás do mineiro está o ser humano, sua possibilidade de conspurcar o amor ao próximo, de violentar o outro, de negá-lo. O que significa, no fundo esta frase? Nela está a presença da morte, do câncer. O homem é imperfeito, morre. Esta amarga realidade pode fazer com que o homem se torne mau, ferido no seu orgulho, rancoroso. Nesta linha, a solidariedade ao que tem câncer se reduz, no fundo, ao regozijo de saber que é ele quem morre, não eu. Ele morre, ele é fraco e sofre, rojado na poeira de sua miséria, e com isto não é mais o competidor que ameaça, aquele cujo êxito pode espicaçar minha inveja. O outro morre, porque tem câncer, e eu sou solidário a ele porque posso ter a ilusão de que ele morre, inclusive a minha morte, dispensando-me de morrer. Por isto sou solidário a ele, e quero que ele morra, pois enquanto ele morre eu sou vivo e compro ao preço de sua morte uma ilusão de permanência.

 

Por que vou ser bom, se a vida traz em seu bojo o câncer, a maldade, a morte? Por que devo aceitar a minha morte, se ela me joga no centro mesmo da minha inermidade, do meu desamparo radical e da minha essencial pobreza? Quero ser forte, não fraco; quero ser imortal, não finito; quero ser rico e poderoso, não pobre. Rejeito a minha pobreza e a minha morte como uma abjeção, e escolho para justificar-me o caminho da força, do orgulho e do desprezo pelo sentimento do homem.

 

E aqui chegamos à encruzilhada dostoievskiana; se o homem só é solidário no câncer, tudo é permitido. Este é o problema metafísico com o qual se defronta Edgar, o personagem central do filme "Bonitinha, mas Ordinária". A frase o trabalha como um câncer, a frase é o câncer. Edgar é, por um lado, um ressentido, com sede de revanche. Ele não quer ser como o pai, que foi enterrado como indigente. Quer um enterro de luxo, com ataúde de tampa de vidro, como o do Getúlio. Aqui se percebe o repúdio à morte e a fantasia de derrotá-la pelo fausto, pelo luxo. Edgar quer o poder, o dinheiro, a ilusão da imortalidade. Ele é um ex-contínuo e se envergonha de sua origem humilde. A condição de contínuo representa a inermidade da condição humana, a sua essencial pobreza, a sua humildade constitutiva. Ele quer rejeitar seu desamparo de homem, sem conhecer que só a sua integral aceitação se torna fonte do verdadeiro poder e da verdadeira riqueza. E é com voracidade raivosa que se dispõe ao banquete da vida, com dentes afiado e rancor no coração.

 

Este é o drama de Edgar. A frase do Otto se ergue ante ele como um apelo à corrupção e à verdadeira morte. Tudo conspira para que ele se entregue à voragem do desespero e da brutalidade: a noiva violada, a voracidade da mãe por dinheiro, o conhecimento que toma de que uma sua vizinha, por quem se apaixonara, era uma prostituta que se perdera ao tentar salvar a mãe de uma acusação injusta de roubo nos Correios e Telégrafos. Tudo se corrompe, a noiva, a vizinha, a mãe, as irmãs da vizinha, violadas numa festa demoníaca em casa de seu futuro sogro, tudo é mau, o homem só é solidário no câncer. Estou me despedindo dos meus dividendos, dos meus cavalos - grita o milionário no meio do bacanal -, o homem vai morrer, tenho ódio no coração, não posso receber agora um foguete russo pela cara.

 

É de todo este lodo que Edgar tem de emergir, para salvar-se. E ele o consegue, na medida em que aceita ter as mãos vazias, para própria pobreza humana transfigurada. O novo filme de Nelson Rodrigues é uma terrível e dilacerada confissão de amor ao ser humano e de fé na sua bondade. Obrigado, Nelson Rodrigues, pelo bem que o seu "Bonitinha Mas Ordinária ou Otto Lara Resende" me fez.

 

 



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Sobre

Nelson Falcão Rodrigues nasceu no Recife, em 23 de agosto de 1912, o quinto filho de uma família de catorze. Quando tinha três anos, seu pai, Mário Rodrigues, foi tentar a sorte no Rio de Janeiro, capital da República. O combinado era que tão logo encontrasse trabalho, chamava a família para ir a seu encontro. Maria Esther, sua esposa, não agüentou esperar. Em 1916, empenhou as jóias e mandou um telegrama para o marido, já avisando do embarque naquele mesmo dia. Nelson conta, nas "Memórias" publicadas no "Correio da Manhã", que se não fosse a atitude da mãe, o pai jamais teria permanecido no Rio.