Entrevistas

O homem do cinema

Matéria de 22/12/1980


“Daqui a 6 mil anos, quando, então, o cinema for arte,talvez eu pense em fazer um filme ou, pelo menos, um roteiro”. A frase de 1972 refletia o desinteresse de Nelson Rodrigues por esta arte e o desencanto com as adaptações de obras suas: “ A peça que passa a ser filme vira antipeça”. Dizia que, na tela, Bonitinha Mas Ordinária, O Beijo no Asfalto, Boca de Ouro e outras pareciam-lhe uma caricatura de mim mesmo”. O excesso de agressividade frente ao cinema (e não só ante o cinema brasileiro) cedeu passo à evidência do tropicalismo cinematográfico de grande parte de sua obra e do “precoce engatinhamento” de cineastas do país, quando abatendo sua “profecia” dos seis milênios, afirmou, um ano depois, que “do cinema brasileiro, salva-se Toda Nudez será Castigada” (73), e admitiu gostar de Boca de Ouro(versão realizada por Nelson Pereira dos Santos, 62). Nesta entrevista, concedida ao crítico José Lino Grünewald, não escondia sua alegria ao movimento do Cinema Novo: a cinematografia nacional teria “futuro” quando desaparecesse “até o último vestígio” do CN.

De cinemanovismo não padece O Beijo (a peça O Beijo no Asfalto levada ao cinema por Flávio Tambellini, 65), que se perdeu em grande parte por caminhos de afinidade com os dramas  psicológicos de William Wyler (o cineasta de Pérfida/ The Little Foxes) e com o expressionismo alemão. A imensa admiração de Tambellini pelas criações de Nelson Rodrigues não o poupou  do erro de tentar transfigurar os personagens e sofisticar seu habitat. Mas o Cinema Novo foi uma das alas mais destacadas na incompreensão da arte de Nelson Rodrigues durante os anos 60.

Antes, o livro Meu Destino é pecar (assinado com o pseudônimo Suzana Flagg), deu origem a péssimo filme dirigido por Manuel Peluffo, em 52; Asfalto Selvagem, de J.B. Tanko, tinha virtudes  cinematográficas tradicionalistas (63) e deu origem `a “continuação” chamada Bonitinha mas Ordinária, dirigida por J. P. Carvalho, no mesmo ano. Apesar dos freios de uma tradição censória que considera Les Amants, de Malle, um atentado aos bons costumes, as duas produções de 63 viveram sobretudo da aura de escândalo que cercava _ pela natureza dos temas e diálogos_ todos os escritos do autor. E se 1962 já é ano importante para o movimento  cinemanovista (surgia Os Cafajestes, de Ruy Guerra ), Nelson pereira dos Santos se aproxima do texto de Boca de ouro com uma frieza intelectual que se reflete na direção apenas correta: “minha posição foi a de diretor contratado, ou seja, havia limitações de produção; não podia fazer nada de pessoal”. A lembrança mais estimulante do filme corre por conta da interpretação de Jece Valadão no papel-título.

Há três títulos-chaves na filmografia de Nelson Rodrigues: em primeiro plano, dosi de Arnaldo Jabor, o já citado Toda Nudez Será Castigada (que atravessou com mutilações uma batalha na Censura, esteve proibido) e O Casamento, que é de 75; e Os Sete Gatinhos, 80, realização de Neville D’Almeida, que se beneficiou com a confiança do autor na produção (este deu a “ consultoria” solicitada durante a adaptação da peça  e a estruturação do roteiro e acompanhou parte das filmagens. Estes três filmes marcam o encontro real entre as ambições críticas de cineastas oriundos do Cinema Novo e a genial  Administração da violência e do irracionalismo operada por Nelson Rodrigues.

Antes, os homens de cinema raramente vislumbravam o que havia de cinematográfico no autor de Álbum de Família. Os paroxismos de tragédia e o humor presente  até na intimidade com a morte exerciam fascínio e, ao mesmo tempo, intimidavam os realizadores. Não só no título O Beijo, de Tambellini, perdeu contato com o asfalto. O olhar “social” de Nélson Pereira dos Santos não era dos mais indicados para enxergar ambigüidades e contradições do Boca, Leon Hirszman, ao filmar a versão de A Falecida, 65, conseguiu esvaziar a peça de todo humor, talvez por considerar ideologicamente absurdo admitir sorrisos em meio à miséria material. O que Hirszman respeitou ao extremo foi o escatológico, valeu-se muito dos diálogos (oportunidade extraordinária para o talento de Fernanda Montenegro), incorreu em pecados de naturalismo na direção de elenco e conseguiu uma ambientação suburbana mais que razoável.

O orgulho autoral dos diretores de filmes (avalizado pelos estudiosos de defensores de uma politique des auteurs) levou-os a uma febre de copydesk _ nos anos 60_ quando se aproximavam da literatura ou do teatro. Depois, veio a autocrítica, exemplar nas duas adaptações de Jabor. Toda Nudez visto como uma peça atual, inclusive.

“Tem muito a ver com o que se passa atualmente aqui: procura-se dissimular a desordem e o desespero dos seres humanos sob pretexto de boa educação” (Jabor). E consegue efetivar um filme ao mesmo tempo romântico, cômico, desesperado, trágico e realista”. O casamento dá continuidade ao momento de humildade assumido pelo cineasta, levando ao cinema, “sem cautelas de despojamento” as situações e personagens do romance. Com a humildade vem a iluminação interior e Jabor expõe com intensidade a miséria moral dessa galeria humana, conseguindo fugir a certo “salvacionismo” do Cinema Novo e reconhecendo _ mais além do fato sócio-econômico _ a orfandade existencial, a perda da auto-estima, a insânia dos corpos reprimidos.

Nas bilheterias, a versão rodrigueana de maior sucesso é A Dama do Lotação, que se beneficia, em sucessivas reapresentações, dos apelos pornoeróticos de abertura censória. Seu diretor, Neville D’Almeida, foi bastante feliz em investida posterior: Os Sete Gatinhos. Sem veleidades de reinvenção, D’Almeida leva ao espectador um cáustico desafio à cultura, à moral e à economia de sentimentos vigentes. Aqui e ali o filme visita a tradição da chanchada, sem nenhuma grave perda de densidade dramática. E é dos mais felizes no aproveitamento dos achados e das reciclagensdo idioma por Nelson Rodrigues.      



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Sobre

Nelson Falcão Rodrigues nasceu no Recife, em 23 de agosto de 1912, o quinto filho de uma família de catorze. Quando tinha três anos, seu pai, Mário Rodrigues, foi tentar a sorte no Rio de Janeiro, capital da República. O combinado era que tão logo encontrasse trabalho, chamava a família para ir a seu encontro. Maria Esther, sua esposa, não agüentou esperar. Em 1916, empenhou as jóias e mandou um telegrama para o marido, já avisando do embarque naquele mesmo dia. Nelson conta, nas "Memórias" publicadas no "Correio da Manhã", que se não fosse a atitude da mãe, o pai jamais teria permanecido no Rio.