Entrevistas

Entrevista com Sérgio Britto

Matéria de 19/12/2000


Ator, diretor, atuou na primeira montagem de Beijo no Asfalto.


Nelson e a Imprensa

Cada vez que chamavam o Última Hora de pasquim era uma gargalhada só.

Nelson saiu do jornal Última Hora por causa de ‘Beijo no Asfalto, é verdade?

É. O Beijo no Asfalto criticava a imagem que o jornal Última Hora tinha. Na peça, o jornal era chamado de pasquim sensacionalista, o que era verdade...

Mas o Nelson trabalhava lá...

Quando o Nelson escreveu a peça, foi até o Samuel Weiner, dono do jornal, e mostrou a idéia. O Samuel ia viajar, deu uma olhada rápida e disse que tudo bem. O Nelson então, usou o Amado Ribeiro, um repórter que existia, como personagem da peça. O Amado era um repórter terrível, que inventava situações para as suas notícias.  

Contam que, uma vez, ele pegou um carro velho, botou fogo e empurrou pelas ladeiras da Barra da Tijuca. Depois, fez a reportagem Mistério do Carro Incendiado. Não tinha ninguém lá, ele mesmo que tinha armado tudo. O Beijo no Asfalto conta, justamente, um caso inventado por ele.

E o Amado foi assistir a peça?

Foi, mas queria conversar comigo para que eu, que estava fazendo o papel dele, entendesse melhor o personagem. Eu disse que não, que iria fazer o papel só com as informações que Nelson havia me dado.

E como foi a reação do público à peça?

Quando a peça estreou, o teatro lotou e o público ria para burro quando falavam do Última Hora. Cada vez que chamavam o Última Hora de pasquim era uma gargalhada só. O Samuel chamou o Nelson e pediu para ele tirar o nome do jornal e o nome do Amado Ribeiro. A principio,  Nelson negou, mas Samuel continuou insistindo. Lembro que Nelson ficou apavorado, afinal, era o emprego dele que estava em jogo.

O elenco era todo contra a mudança. A platéia reagia muito calorosamente à inclusão do nome do jornal. Ia ao teatro e vaiava. Lembro de uma mulher que chegava perto do palco e ficava vaiando. O marido vinha, puxava ela para fora do teatro e ela saía gritando: Eu volto na matinê de quinta! Nelson acabou deixando tudo como estava.

E ele foi despedido?

Não o despediram, mas começaram a boicotar a coluna dele. Isso fez quase com que ele pedisse demissão. Foi logo depois desse episódio que começou a escrever novelas.


Nelson e o Futebol

Nelson era muito supersticioso

Como era o Nelson torcedor?

O Nelson era um fanático por futebol, nós conversávamos muito sobre o assunto e íamos sempre aos jogos.  Fosse em Campo Grande, Niterói, Bangu, Cascadura, lá estávamos nós para ver o Fluminense jogar. Mas ele nunca saía do Estado do Rio, para ele o Brasil acabava no Túnel Novo. Até que um dia, Nelson me telefonou e perguntou: Você acha que o Rodrigo vai fazer gol? O Rodrigo era um centro-avante, que tinha sido contratado por ser um goleador e ainda não tinha feito nenhum gol com a camisa tricolor.

O Nelson estava desesperado: Você acha que ele vai fazer gol? Eu estou querendo ir ao jogo, mas estou com medo dele não fazer gol.... E eu disse para o Nelson: Vai que o Rodrigo hoje faz um gol. Soltei isso assim, sem mais nem menos, e o Rodrigo fez dois gols. Nelson no dia seguinte escreveu uma crônica me chamando de pitonisa. Era só o Nelson que fazia esse tipo de coisa.

Ele reclamava dos outros times, quando o Fluminense perdia?

Ele não examinava as coisas com muita clareza. A torcida do Flamengo é uma das coisas mais fortes da sociedade brasileira. Não se tem dinheiro, não tem comida, briga-se em casa, mas o Flamengo ganha e o brasileiro esquece tudo. Quando o Flamengo perde, é a desgraça completa, pois o sujeito soma todos os problemas que ele tem com a derrota do Flamengo.

O Nelson via isso, mas não com o raciocínio. Ele não se deixava arrastar pela razão. Nelson gostava do drama. Ele gostava de encontrar dificuldades e passar isso para os seus personagens.

Como no teatro, que, aliás, também se faz na hora, como o futebol...

Nelson achava inclusive o videotape burro. Aceitar a realidade fotografada não combinava com ele. Para ele, a realidade estava ali, na frente dele. Não sei como ele veria aquele cálculo que tem hoje, que traça a linha da jogada, mostra se o jogador botou ou não a mão na bola. Essa objetividade toda ia irritar ele. Ele preferia dizer: Esse pênalti estava marcado há séculos!

Ele tinha superstições?

Nelson era muito supersticioso, tinha a mania de vestir a mesma roupa para ir a vários jogos. O futebol para Nelson era um espetáculo. Ele via sempre a dramaticidade em tudo.


Nelson e a Televisão

Nelson tinha a força da palavra

Pioneiro do folhetim de jornal no Brasil, Nelson Rodrigues também levou o gênero para a TV. Além de ter escrito quatro novelas para a TV Rio, muitas de suas obras ganharam adaptações televisivas. Nessa entrevista, o diretor e ator Sérgio Britto conta como foi dirigir a primeira novela de Nelson, A Morta Sem Espelho, em 1963.

Como era o Nelson escritor de novela?

Nem todo artista é um criador. Existem bons diretores e bons atores que não são os criadores absolutos. São pessoas com capacidade de vencer em sua profissão, de maneira altamente profissional e capaz, mas não são os criadores, aqueles que inventam o mundo do espetáculo.

Os que inventam o mundo especial são muito coerentes. O Nelson escritor de teatro, o Nelson produtor de cinema ou o Nelson roteirista de televisão: é impressionante como é o mesmo Nelson.

Como eram as novelas de Nelson?

Nelson escreveu quatro novelas. Cada uma delas com mais de 100 capítulos. A primeira foi A Morta Sem Espelho, que contava a história de uma mulher que não se via no espelho. Uma coisa completamente fantasiosa, dessas obsessões que Nelson tinha. Mas eu me lembro pouco.... Tenho uma certa frustração de não ter guardado as novelas do Nelson, mas naquela época a gente não tinha essa possibilidade.

Você destaca alguma entre essas quatro?

A melhor de todas foi A Morta Sem Espelho. Era muito curiosa, meio fúnebre, estranha. Tinha obsessões sexuais, afetivas, e ao mesmo tempo, algo de Edgar Allan Poe, clima fantasmagórico.  Quem fazia a personagem principal era a Rosita Tomás Lopez. Paulo Gracindo era seu par.

As novelas, assim como as peças, enfrentaram problemas com a censura?

As novelas tiveram dificuldades enormes só porque eram de Nelson. Coisas que normalmente era liberadas, passaram a ser vetadas....

Você lembra de algum exemplo?

Uma cena de duas mulheres conversando uma se penteando, outra sentada. O censor falava: Essa cena não pode. Afinal, é na  intimidade de um banheiro... Meu Deus! São apenas duas pessoas conversando, nós argumentávamos e ele explicava: Mas é Nelson... Sabe como é que é...

Estavam pré-conceituando, pré-julgando só porque era uma novela do Nelson. Chegavam a dizer absurdos como por exemplo: Cena de mãe discutindo com filha na novela é muito forte. E quando dizíamos que as outras novelas tinham esse tipo de cena, lá vinha a mesma resposta: Mas essa é do Nelson!

E como vocês saíram dessa situação?

Acabamos dando um drible na censura. A novela era o único meio de salvar a TV Rio. Na época, uma emissora de São Paulo tinha contratado quase todos os atores da TV Rio e, de repente, a emissora ficou sem 60% de sua programação diária. A contratação de Nelson fazia parte de uma medida de emergência, mas a censura estava atrapalhando o plano...

Aí, depois de duas tentativas A Morta Sem Espelho e Pouco amor, não é amor, Nelson adaptou O Tronco do Ipê, de José de Alencar, para o horário das 18h, com o nome de Sonho de Amor.

E ninguém iria proibir José de Alencar...

Mas não é que o danado do Nelson, conseguiu fazer um José de Alencar com cara de Nelson. A obsessão, o repeteco das palavras, a angústia das pessoas que não conseguem se completar ou se separar... Esse nervosismo no diálogo que parece que um vai esganar o outro, que alguém vai dar um grito.

Agora, imagine o que era isso para o ator. Em uma peça, ele tem dois meses para decorar todas as falas. Na novela, em uma semana, tinha vários capítulos para gravar. Era dificílimo, dificílimo.

E como o Nelson criava no meio dessa correria?

A experiência da novela me fez um dia descobrir o Nelson no nascedouro, o Nelson criando. Os capítulos vinham por semana. Então, um dia, ele chegou para mim e perguntou: Como é que terminava na semana passada? E eu respondi: De uma maneira incrível, a mocinha disse Não! para o galã. Ele foi atrás dela, insistindo, e ela disse NÃO! novamente e acabou o capítulo. Agora, todos estamos esperando para saber que não’ é esse...

O Nelson falou: Não, é? E tirou a gravata, o paletó, sentou na frente da máquina e eu fiquei parado olhando para ele e pensando: Não posso perder a oportunidade de ver este homem criando. Enquanto escrevia, murmurava: Não, não.... E no papel: Não, não por quê? Porque não. Mas isto não é justo! Não! Mas você deixa eu falar? Não! Mas.. Não, não e NÃO!

Daí a pouco ele tinha escrito uma página inteira sem dizer absolutamente nada. Depois, ele produziu mais quatro páginas. Era uma coisa genial... As palavras se batendo umas com as outras. Acho que nenhum escritor de teatro tem mais isso: o poder da palavra, a força da palavra.

E o humor rodrigueano?

O humor dele aparecia nessas novelas também. Ele fazia o narrador da novela, resumia o capítulo anterior, mas levava tanto tempo falando que deixava as pessoas malucas. Quem curtia Nelson, adorava. Ele falava (imitando): No capítulo de ontem, a moça disse que não queria e o homem ficou desesperaaadoooo... Sabe aquela fala mole do Nelson? Era muito pitoresca.

Havia alguma coisa que ele usava no teatro, mas não usava na televisão ou vice-versa?

O Nelson na televisão tinha um limite. Ele não mostrava aquelas perturbações sexuais ao extremo, como ele fazia no teatro.

O Nelson ia às gravações das novelas? Dava dicas aos atores?

Não. O Nelson raramente ia às gravações. Uma vez ou outra, podia até ir, mas eram raríssimas... Ele não interferia em nada.

Você acha que Nelson gostava de escrever telenovelas?

Eu não sei até que ponto a novela foi uma satisfação para Nelson. Eu me lembro que o resultado da novela foi bom para ele. Ele era bem pago para isso, mas, não sei se ele gostou de fazer. Uma vez, nós fizemos Vestido de Noiva, na TV Rio. Dessa, ele gostou realmente. Fernanda Montenegro, Glauce Rocha e Isabela Tereza estavam no elenco. Ele gostou tanto que queria que a gente fizesse um filme. 

Quais eram as fontes de inspiração do Nelson?

O Nelson vivia o dia-a-dia. A inspiração dele vinha em cada conversa que ele tinha.

Vocês eram bastante amigos e romperam relações, em determinada época. Como foi a briga?

Nelson começou a atrasar os capítulos. Foi um problema terrível. Imagine como ficavam os atores para decorar aqueles diálogos, tendo recebido o capítulo na véspera, para gravar no dia seguinte. Não dava. A gente tinha que ter, pelo menos, uma semana de antecedência. Eu reclamei e nós brigamos. Acabei até saindo de lá por causa disso. Achei que o Walter Clark, tinha jogado o Nelson contra mim.

E no tempo em que vocês estavam brigados, como vocês agiam?

Ele escrevia contra mim e eu escrevia contra ele. Brigamos jornalisticamente. Ele me chamou de vaidoso e eu disse que, em matéria de vaidade, ele ganhava de dez a zero. O tempo passou, e quatro anos depois, eu estava na sala do SNT e ele chegou. Ficamos nos olhando. Aí, eu disse: Nelson, eu quero falar com você! E ele: Eu também quero falar com você! No dia seguinte, escreveu em sua crônica: Estava lá meu inimigo. Ele falou comigo e minha cara foi ao chão. Meu inimigo me ensinou o ato da generosidade. Nelson tinha esse estilo, que muitas vezes beirava à cafonice. Mas a cafonice fazia parte do mundo que ele criava, fazia parte da sua 



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Sobre

Nelson Falcão Rodrigues nasceu no Recife, em 23 de agosto de 1912, o quinto filho de uma família de catorze. Quando tinha três anos, seu pai, Mário Rodrigues, foi tentar a sorte no Rio de Janeiro, capital da República. O combinado era que tão logo encontrasse trabalho, chamava a família para ir a seu encontro. Maria Esther, sua esposa, não agüentou esperar. Em 1916, empenhou as jóias e mandou um telegrama para o marido, já avisando do embarque naquele mesmo dia. Nelson conta, nas "Memórias" publicadas no "Correio da Manhã", que se não fosse a atitude da mãe, o pai jamais teria permanecido no Rio.