Entrevistas

Nelson Rodrigues: Reacionário é a Rússia

Matéria de 11/07/1977


Após escapar de seu quarto enfarte, Nelson lança O Reacionário, coletânea de suas crônicas nos jornais. Entrevista a Cláudio Lacerda.


Aos 64 anos, Nelson Rodrigues sente-se como um ressuscitado. Da doença - em que novamente esteve em coma - guarda apenas as emoções de um grande delírio e as rigorosas prescrições médicas, como a proibição de fumar, que cumpre fielmente. O mais são planos para o futuro, futuro que já chegou com o lançamento, este mês, de mais um livro. O Reacionário, uma coleta de suas Confissões publicadas nos jornais.

Sentado numa almofada colocada numa cadeira do papai, tomando em duas horas de conversa dois cafezinhos meio aguados e sem açúcar - depois de ter passado por mais um check-up médico - Nelson conta seus planos; planos muito ambiciosos.

Preciso arranjar tempo para realizar os meus dois grandes sonhos: escrever uma peça de teatro em nove atos, que já está na minha cabeça, e fazer um grande romance; não um romance de costumes apenas, mas um romance sobre o verdadeiro Brasil.

Mas está faltando tempo. Que ele se queixa de perder nas suas atividades diárias de jornalista, ao fazer um artigo por dia. Nelson Rodrigues, no momento, só escreve sobre futebol, que confessa, com certo orgulho, não entender, mas que lhe serviu para criar mais uma de suas tantas frases.

Descobri agora os cretinos fundamentais da crônica esportiva, aqueles que acham que o Brasil não joga nada e que querem que a nossa seleção passe a copiar os defeitos dos europeus. 

E o cretino fundamental parece já ter-se incorporado definitivamente ao imenso palavreado criado por Nelson Rodrigues, tanto assim que esta semana ele mereceu um recado, que considerou desaforado de um amigo que é colunista esportivo. Talvez até mais magoado do que se possa supor pela resposta de Cláudio Mello Souza em sua coluna, Nelson Rodrigues se consola com a certeza de que cretino fundamental vai entrar também para uma espécie de folclore nacional.

E essas frases - frases feitas, segundo alguns - e personagens são extremamente gratificantes para ele. As grã-finas das narinas de cadáver, o padre de passeata, o gravatinha e o Sobrenatural de Almeida, por quem tem um carinho especial, estão todos no seu último livro. Nelson explica as razões do título O Reacionário:

- Todo mundo que me acompanha pelos jornais, sempre ou quase sempre diz que eu sou um reacionário. E eu, para não contrariar a opinião pública - a meu ver a opinião pública não deve interessar ao artista porque ela é capaz de tudo - diria que a opinião pública é uma débil mental. Por isso, escolhi o título de O Reacionário.

- Hoje, não há o menor sentido essa divisão entre esquerda e direita. O que realmente é direita, direita bestial e desumana, é a esquerda. Veja que hoje quando a gente quer dizer que um chefe é feroz, seja um chefe de governo, seja um chefe de repartição, diz-se que ele é um Stalin, um stalinista.

- Na Rússia, quando um intelectual é dissidente, o enfiam no hospício, onde é tratado como louco furioso até ficar louco furioso mesmo. Então é amarrado num pé de mesa, de gatinhas, bebendo água numa cuia de queijo Palmira.

- Evidentemente quando pus o título de O Reacionário no meu livro, estava fazendo uma certa interpretação da palavra reacionário, que não é a minha, por exemplo, pois reacionário, a meu ver, é a Rússia, que não tomou conhecimento e varreu as maiores conquistas do ser humano como tal, como a liberdade de imprensa, que por exemplo, é assunto proibido até de ser discutido nos Estados Unidos. 

- Eu sou anticomunista desde os onze anos. E assumo minhas posições, mesmo quando, hoje, o intelectual virou esquerda porque essa é uma maneira de o sujeito ser inteligente, de ser atual, de ser moderno e, principalmente, de se banhar na própria vaidade.

- Quando você vê as fotografias das passeatas - como é óbvio eram passeatas das classes dominantes - repare que não havia um preto. Não vi uma cara de operário, uma cara de assaltante de chofer, uma cara de entregador de pão. Nada disso. Tudo era gente bem plantada. Eu fiquei na calçada vendo a passeata passar com esta obsessão de ver um preto. Apenas um. Já me satisfaço com um preto. O que vi foi o Arnaldo Jabor, meu diretor que dirigiu o filme Toda a Nudez Será Castigada, chupando Chicabom. E quando ele deixava de lamber o Chicabom dizia participação, participação, participação e depois dava outra lambida no picolé.

E essas posições que tem tomado - embora se reconheça um lutador constante contra a Censura e mais até do que um lutador, uma de suas grandes vítimas -, não foram modificadas nem abaladas durante a doença, quando ele fez uma espécie de balanço de sua vida.

- Eu revejo minhas posições todos os dias, a toda hora. Eu medito sempre e nunca a idade me deu uma limpidez maior de visão.

Mas a doença teve uma grande importância na vida de Nelson Rodrigues, a começar pela proibição do cigarro - ele, um fumante inveterado de mato-ratos. Largar o cigarro foi sacrifício que ele mesmo não se julgava capaz.

- No meu delírio, passei cerca de um mês delirando com os vivos e mortos. Delirei com Carlos Lacerda, que ainda estava vivo, com uma senhora que já tinha morrido sem que eu soubesse, e que apareceu no meu quarto. Eu estive inteiramente do outro lado, em outro plano de vida. E por isso é que eu digo, depois que passei essa experiência tenebrosa, fiquei ainda mais com a sensação do eterno. 

- Mas nem mesmo no delírio reneguei nada do que fiz. Nenhuma das minhas obras. Eu, como sou eu mesmo, sei que tudo que fiz foi com o máximo de sinceridade desesperadora, a sinceridade de quem vai morrer e está dizendo suas últimas palavras, com a certeza que o sujeito deve ter na agonia. Quando saí do meu delírio, acordei dizendo voltei.

- Me deram uma injeção errada e eu tive a maior dor da minha vida. Maior do que o delírio. Mas aí eu despertei entre os vivos. E quando voltei não me arrependi de nada que escrevi até hoje.

E talvez por tudo isso é que ele se queixa de que o dia a dia com o que ganha a vida está tomando o tempo que precisa para seus planos futuros, pois se sente ainda inesgotável o que talvez possa parecer até narcisismo ou superestimação.

E talvez por essa crença no eterno é que Nelson conta que para grande escândalo dos meus amigos, fiquei a favor do Lefebvre, inteiramente, francamente. Sou a favor do latim.

Dos problemas da Igreja, o escritor passa para o das vaias quando se confessa ter um certo orgulho de ter sido o único autor vaiado, uma vez que o público é sempre generoso e chega a aplaudir até por automatismo. Mas quando o sujeito chega a vaiar - monta na cadeira e vaia até porque aquela obra o feriu profundamente. Isso é uma coisa formidável. E isso quer dizer que em futuro próximo a obra de arte será inteiramente reabilitada.

- E foi sobre esta peça Perdoa-me por me Traíres - que o Dr. Alceu escreveu dois artigos, dizendo que a peça começava a ser abjeta no título, quer dizer essa misericórdia, essa bondade, essa compaixão do título ele acha tratar-se de uma abjeção. É um católico que não conhece o perdão.



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Sobre

Nelson Falcão Rodrigues nasceu no Recife, em 23 de agosto de 1912, o quinto filho de uma família de catorze. Quando tinha três anos, seu pai, Mário Rodrigues, foi tentar a sorte no Rio de Janeiro, capital da República. O combinado era que tão logo encontrasse trabalho, chamava a família para ir a seu encontro. Maria Esther, sua esposa, não agüentou esperar. Em 1916, empenhou as jóias e mandou um telegrama para o marido, já avisando do embarque naquele mesmo dia. Nelson conta, nas "Memórias" publicadas no "Correio da Manhã", que se não fosse a atitude da mãe, o pai jamais teria permanecido no Rio.