Meu destino é pecar - Enfim, Suzana Flag não é Nelson Rodrigues
Muita gente conhece e reconhece Nelson
Rodrigues como um escritor de grande fôlego e importância dentro do panorama do
moderno teatro brasileiro. Mas poucos têm notícia de Susana Flag, um pseudônimo
adotado por Nelson em quatro romances que circularam, sob a forma de folhetim,
entre os anos de 1944 a 1947. Talvez por essa razão, a iniciativa da Editora
Nova Fronteira de publicar "Meu Destino é Pecar" tenha suscitado nos
leitores uma curiosidade só saciada quando se chega ao final de 587 páginas
dessa primeira aventura em que Nelson está travestido de Susana.
Não se pode negar, conhecendo a sua
história pessoal e seu longo e decisivo percurso como teatrólogo e como
cronista, que o impulso que induz à leitura é a curiosidade em torno do porquê
do pseudônimo e a inevitável busca das obsessões temáticas e estilísticas que
marcaram definitivamente esse escritor brasileiro.
O porquê, ao menos aparente, do pseudônimo
não envolve grandes mistérios. Rastreando os registros biográficos de Nelson
Rodrigues, fica-se sabendo que ele, utilizando sua flexibilidade lingüística,
sua imaginação e espaço jornalístico de que dispunha, decide enveredar pelos
caminhos do folhetim, gênero muito apreciado no Brasil desde a época do
Romantismo, no momento em que os "Diários Associados" pretendiam
comprar e publicar uma história produzida nos Estados Unidos. A adoção de um
pseudônimo feminino aparece quase como uma decorrência necessária do mistério
rocambolesco que envolve o gênero. O leitor de folhetim é, nos anos quarenta, o
mesmo ouvinte fiel das radionovelas que, açoitado pelas restrições impostas
pela guerra, encontra no rádio e no jornal os capítulos românticos que a
realidade teimava em sonegar.
Somente o conhecimento desses dados pode
ajudar o leitor a consumir "Meu Destino é Pecar" sem a sensação de
que a obra poderia ser reduzida ou, pior ainda, sem a certeza de que Susana
Flag não é Nelson Rodrigues. O que se encontra ao longo dos intermináveis trinta
e quatro capítulos é a reunião malabarística, e às vezes engraçada, de todos os
clichês consagrados pelo excessivo romantismo folhetinesco. Num tempo muito
curto e cronologicamente detalhado, desfilam pela voz de um narrador
onisciente, cansativo e redundante, uma galeria de personagens e dramas que se
multiplicam numa progressão assustadora. O casamento entre as duas criaturas
que mal se conhecem, um Paulo viúvo bêbado, grosseiro e de unhas sujas e uma
Leninha magricela, ingênua, sonhadora e virgem, permite a aglomeração, num
espaço bastante limitado, de sogras, madrastas, conquistadores irresistíveis,
famílias rivais, fantasmas renitentes, empregados fiéis, padre conciliador,
médico eficiente, deficientes físicos, inúmeras mulheres apaixonadas ou em vias
de pais dominadores, filhos submissos. Todos envolvidos por mistérios, paixões,
crimes, frustrações e possibilidades que infindáveis ações se encarregam de
enredar numa única trama.
Mas o leitor não se perde nesse emaranhado.
A técnica do folhetim, ancestral refinado da telenovela, é minuciosa. Cada
núcleo vai sendo trabalhado de forma que as complicações amorosas e os
mistérios todos sejam mantidos e aguçados ao final de cada capítulo. Mesmo
cansado e estranhando a facilidade com que o narrador dispõe de seus
personagens, o leitor caminha resoluto para o final da história. Travestido de
leitor de folhetim, ele nem se importa com o traço grosso que vai delineando a
maioria dos personagens, nem se lembra de contrastar o estilo moroso dessa
prosa superficial com a capacidade de síntese e profundidade do outro Nelson
Rodrigues. Disciplinado e fiel, ele vê aflorar, aqui e ali, alguns traços que
felizmente o teatro do autor mostrou e resolveu de maneira original e séria.
Sem tropeçar ou desistir, ele segue apaixonado pela grandeza das figuras
femininas (que às vezes ele confunde um pouco com coisas extraídas de outras
cenas do autor) e surpreso com a fragilidade das figuras masculinas.
E é sem reservas iniciais que pode entender
o pseudônimo e a afirmação de Nelson Rodrigues: "Eu nunca me assumi como
romancista. Não tenho tempo. Preciso escrever para comer. E a minha obra
teatral é mais importante para mim. Eu levo a sério meus romances. Acho que
eles têm defeitos que são fatais, mas têm qualidades e algumas virtudes
também".