Boca de Ouro (I): A Nelson o que é de Nelson
Matéria de 13/02/1963
Venho insistindo na tese pouca profunda mas
muito verdadeira de que o cinema comercial brasileiro atingiu, a partir de
"O Pagador de Promessas", um nível técnico e artístico até então
desconhecido ou insuspeitado. O "Boca de Ouro" surge em socorro dessa
tese: está longe de ser uma obra de arte, quer no sentido da preservação, quer
no da renovação dos meios expressivos do cinema; mas é uma obra inteligente e
correta, com alguns momentos de evidente e comovente força dramática, e narrada
com muita segurança. Por tudo isso mantém o espectador interessado, se não
mesmo empolgado. "Boca de Ouro" nada tem a ver com a obra que seu
diretor, Nelson Pereira dos Santos, prometeu realizar com seus dois primeiros
filmes, "Rio, 40 graus" e "Rio, Zona Norte". Nada ou quase
nada acrescenta à sua experiência de criador, mas serve para mantê-lo em forma
e para conservar-lhe a destreza no uso da linguagem através da qual ele possa
vir a exprimir-se, integralmente, em seus próximos filmes. Temos portanto
Nelson Pereira dos Santos exercitando-se em cinema e, não, fazendo cinema. O
exercício que lhe pode e deve ser fecundo mas que não lhe permite mergulhar,
profundamente, na essência dramática da peça de Nelson Rodrigues, pois se ela o
interessou como profissional não deve ter lhe sensibilizado como criador, ou,
no caso, recriador. A partir daí poderemos explicar o descaso com que Nelson
Pereira dos Santos tratou alguns elementos do drama e o seu desinteresse em
acentuar a força de impacto de algumas seqüências, personagens e situações.
Bastam dois exemplos. O primeiro: O Boca sonhava em ser sepultado em um caixão
de ouro, mas é levado para o cemitério dentro de um miserável e anônimo caixão
de madeira - e o que existe de simbólico e dramático nessa passagem violenta do
sonho para a realidade, da vida para a morte, foi desprezado pelo diretor, que
não se preocupou em destacar, visualmente, esse detalhe de tamanha
expressividade e importância. Segundo: Guigui, que segundo se percebe, deve ter
participado intensamente da carreira do Boca, é excluída das seqüências
iniciais e passa a viver, nas três narrações, um papel de segunda e apagada
importância. Isso cria uma contradição entre a Guigui que narra e a Guigui que
é narrada, contradição que se agrava porque entre uma e outra, não há qualquer
elemento psicológico de semelhança. Pode-se argumentar, em defesa do diretor,
que ela é mesmo que se vê, mas isso não exclui a possibilidade de o diretor
manter, nas duas personagens diferenciadas pelo tempo e pela memória, alguns
traços comuns de identificadores. São apenas dois exemplos; poderia dar mais
alguns de menor importância. Mas ao mesmo tempo em que se constata o descuido e
o descaso do diretor com relação a certos elementos não se pode deixar de
ressaltar a sua profunda intuição do problema central e a sua poderosa
capacidade de narrador, que nos é revelada frequentemente. Aqui basta um
exemplo: o primeiro olhar do Boca para Celeste é aprofundado por um movimento
rápido da câmera em direção as partes mais sugestivas e simbólicas do seu
corpo. Nesse rapidíssimo instante temos um prodígio de síntese e informação
dramática, e desde logo ficamos sabendo qual o tipo de interesse que une o poderoso
bicheiro à modesta suburbana. Devo continuar essa crônica amanhã, leitor, pois
já não há espaço bastante para contá-la toda, hoje.